LIVSARIA CASTIIHO
Rua S. Jas4 114-Teiephone 5466 c.
NO PRELO:
ife
PASQUINADAS
A. -*'
CARIOCAS
POR
LIBRARY OF THE
UNIVERSITY OF ILLINOIS
AT URBANA-CHAMPAICN
869o9
T63v
1S20
Verdades Indiscretas
ANTONIO TORRES
VLRDflDES
INDISCRETflS
2^ edigao
(5.« Milhelro)
J 1 ! I ' 1 ! ( ij ( t ^ ';
RIO DK JANEIRO
lilTBABIA CA8TI1.HO
A. J. DE CA8TILH0 — Editor
RUA S. Josft, 114
]090
V
Laisaea dire, laissez-vous bl&mer, con-
-o dAmaer, empriaoner, lalsaez-voitB pendre,
3 V ni»ia pnbliez votre penaSe. Ce n'est paa
^ un droit, c'eat un devoir, etroite obliga-
tion de quiconque a une pena^e, de la
produire et mettre au jour pour le bien
commun. La veiite est toate k toua. Ce
que TOua connaisaez utile, bon k aavoir
pour un cbacun, voas ne le pouvez taire
^n coQBcience. Jeuner, qui trouva la vac-
cine, etlt ete un franc acel^iat d'en garder
une heure le secret ; et comme il n'y a
point d'homme qui ne croie sea id^eea
utiles, il n'y en a point qui ne soit tenu
de les eommuniquer et rSpandre par tous
moyens k lui poasiblea. Parlor eat bien ;
ecrire eat mieuz; imprimer eat ezceliente
choae. Une pensee d€duite en termea courts
et dairs, avec preuves, documenta, ezem-
ples, quand on I'imprime, c'eat un pam-
phlet et la meilleure action, courageuae
souvent, qu' homme puisae £fure au mon-
de. Car, si votre pensSe eat bonne, on en
profite ; mauvaise, on la corrige, et I'ont
profite encore. Mais I'abua... sotiae que
ce mot ; cenz qui I'ont invents ce aont ceuz
qui vraiment abusent de la prease, en im-
primant ce qa'ila veulent, trompant, calom-
niant et emp<gcbant de rep^fid^e. Quand
ila orient centre lea pa^hleta ila
ont leurs raiaona admirabiea. J'ai lea mien-
nea et vonrlraia qu'on en^t davantage,
que cbacun pubMt tout ce qu'il pense et
salt ! Lea jSauitea auaai criaient centre
Paaeal et I'euaaent appele pampbletaire,
xoais le mot n'ezistait paa encore; ila I'ap-
pellaient tis&n d'enfer, la m^me choae en
atjlecagot. Celaaignifie toujoura un hom-
me qui dit vrai et ae fait ^couter.
Patjl-Lottib Cottbibb
Pamphlet des Pamphlets.
.V-
PREFACIO
Questdo fechada fez o editor de ter um
prefacio para este livro ; e eu, obediente como
costumo ser para com quern me falla branda*
mente, aqui estou a escrever o famoso prefacio,
posto que sem atinar muito nitidamente com a
utilidade e menos ainda coma necessidade delle.
Com effeito, este livro e feito de coisas ha muito
tempo escriptas, sendo Ineditas umas, e outras
jd publicadas em jornaes. Si me perguntarem
por que altas razoes publico este livro, respon-
derei que isto fago somente por me ter o editor
Ojfferecido comprar uma edigdo de folhas avul-
sas^ que eu por ventura tivesse dentro das mi-
nhas pastas e das minhas gavetas. Caso quei-
ram saber o que penso do volume, direi que ndo
penso delle mais mal do que o que por ventura
possam pensar os meus mais encarnigados des-
affectos. Dei-Ike o titulo de Verdades Indiscre-
tas, embora ndo ignorando ser essa uma ex-
pressdo pleonastica, pois quern diz verdades
commette sempre indiscregdo . . . A linguagem
VIII
em que o escrevi pode nao ser das mais primo-
rosas, mas dots attributes ha que ninguem Ihe
poderd, sem manifesta injustiga, negar : sin-
ceridade e franqueza. Escrevendo para ser lido
por homens, claro estd que, embora evitando o
termo vulgar, desprezo euphemismos e circum-
loquios sempre que a verdade me parece exigir
a expressdo clara, secca e por vezes rude. Nao
tenho, cuido eu, necessidade de dizer mais a
r^speito destas paginas, que — pobre de
mim, I — jamais cogitdra de dar d estampUy si
nao me houvera appctrecido um editor provi-
dencial e bastante tem^erario para adquiril-as
e imprimil-as. Deus o ajude e o publico o fa-
vor ega, afi^n de que esse honrado e corajoso ho-
mem^y sem motivos para arrependimento, com-
pre futuramente ao pobre escriptor o resto da
papelada que elle ainda possue nas gavetas e
no csrebro . . .
Kio de Janeiro, 15 de setembro de 1920.
NOTA i>ESTA 2.* EDipAO — O exito obtido por este liyro
(dois mil ezemplares exgottados em qaioze dias, qaasi que s6 no
Rio de Janeiro) nem o esperava o aator, nem o adivinh^ra o
editor. Eia porque sae agora a segunda edigao, Antor e editor
agradecem ao publico o apoio que Ihes t£m dado. Negta edi^&o
corrigiram-se erros tjpographicos que escaparam & revis&o na
primeira ; assim como tanibem e possivel qae erros n&o apparc-
cidos na primeira surjam nesta. Una e outros mereoerfto indul-
gencia do leitor.
A. T.
Z^-'Z^^-y-; -.J>r'--'-
A' maneira de Pangloss
Hontem, no cemiterio de S. Francisco
Xavier, tentou suicidaf-se um velho esculptor,
e deixou em carta os motives que o leva-
ram a sahir volurttariamente die uma vida em
que entrou sem ser consultado, como toda
a gente . . . Depois de narrar hessa carta as
suas desditas, disse elle: «PArece que nesta
terra os vagabundos e os ladrdes t6m mais
garantia do que os homens hanestos.» HSto
parece, nao, senhor : 6 c&tto. Ha uma solMa-
riedade tao extraordinaria, tao perfeita enire
OS vagabundos e os ladrdes, que nao s6mente
elles t^m todas as garantias, como ainda sac
OS maiores pregadores de moral para os ou-
tros. E si tivermos a ingenuidade de quefer
resistir d matilha inirene, anriscamo-nos a ir
parar na Detengao, porque a policia e favora^
vel aos vagabundos e aos ladroes. Em caso de
conflicto entre homens honestos e sujeitos de
2 VERDADES INDISCRETAS
consciencia cauterisada, vencerao fatalmente
OS ultimos, si a policia for chamada a decidir
o pleito. De maneira que, em casos taes, a
solugao parece ser : ou assentar praga de va-
gabundo, ou imitar o esculptor. Samuel Smi-
les aconselharia o trabalho, o esforgo, a virtu-
de. Pedro Kropotkine talvez aconselhasse
meios violentos. Jesus Christo aconselharia
paciencia. O sr. Teixeira Mendes lembraria a
altruismo e a obrigagao de cada um ser vir-
tuoso afim de concorrer para o triumpho do
regimen pacifico-industrial. Esses conselhos.
tern todos o defeito de ser muito solemnes.
Para nao ser esmagado pelos vagabundos e
ladroes, o melhor e ir-lhes cada qual cedenda
quanto for possivel do que contiver a sua bolsa»
e, depois disso, fazer como Figaro : rir-se
delles e de tudo, de peur cH en pleurer. . . Nesr-
tes tempos tristes, o riso e o unico reducto dos
infelizes. Vivera quem for capaz de rir. Nao se
trata aqui do riso vulgar, mas do riso interior.
Pode um homem estar serio e, entretanto, com
a alma desfeitaem risadas interminaveis. Esta
maneira de rir nao desopila o bago, mas con-
sola o espirito. Ainda e a melhor maneira de
viver nestes tempos asperos : nao se enthu-
siasmar pela grandeza da Patria, que p6de ser
instrumento nas garras de espertalhoes : nao
A MANBIRA DB PANGI^OSS. . . 3
desesperar do future da Patria, porque esse
desespero tambem p6de servir de gazua para
espertalhoes de outro grupo. Rir para viver.
A vida nao e das coisas mais agradaveis, mas
tambem, por outro lado, talvez nao valha a
pen a morrer. . .
A Gentileza Britannica
Appeteceis saber como os inglezes cos-
tumam communicar a um cidadao que elle vae
ser enforgado ? Em pleno tribunal, o lord-
chief Justice, imitado pelos outros tres juizes,
coUocou um quadrado de panno preto sobre
o gorro pardacento, e, refere um jornalista
parisiense,dirigindo-se a Sir Roger Casement,
Ihe disse muito amavelmente :
« — David-Roger Casement, lejury
a delibere sur votre cas et decide que
vous etiez coupable du crime abomi-
nable de haute trahison. La sentence
de la cour est que vous soyez pendu
par le cou jusqu'a ce que vous soyez
mort. Que le Seigneur ait pitie de vo-
tre ame . »
Em vernaculo, quer isto dizer : « Da-
vid-Rogerio Casement, deliberaram os juizes
6 VERDADES INDISCRETAS
acerca de vosso caso e decidiram que sois reo
do abominavel crime de alta trahigao. E' i»en-
tenga da algada que sejais enforcado pelo pes-
C090 at^ a morte. Tenha o Senhor piedade da
vossa alma »
Sem querer entrar no exame de meritis
desta deeisao, devemos convir nisto — que os
inglezes sao fidalgos quando tern de com-
municar a um cidadao que elle e um trahidor
e que como tal sera enforcado. Interessante
aquelle (njusqud ce que vous soyez mort — en-
forcado pelo pescogo ate a morte ». Isso re-
vela o espirito pratico britannico. Quando se
diz a um sujeito — «0 senhor vae ser enfor-
cado » — ainda Ihe pode restar alguma espe-
ranga, ou de ser enforcado pelo p^, ou ainda
de viver, mesmo depois do carrasco Ihe
haver sapateado sobre o pesco90 ; mas os in-
glezes, que nao querem enganar a ninguem,
que fazem questao de lealdade ate a morte, di-
zem graciosamente ao reo: aMeu amigo — o
seu crime exige castigo exemplar ; o senhor
vae, pois, ser enforcado pelo pesco^o . . . ate
morrer, note bem. A legislagao ingleza, sobre
ser a mais liberal do universo, e tambem e por
isso mesmo uma das maissabias. Si, portanto,
julga necessario avisar ao reo de que seu en-
forcamento sera «ate morte», e porque, de
certo, isso e de necessidade provada pela ex-
A GENTILBZA BRITANNICA 7
periencia, ao menos na Inglaterra. Quanto
^ mim, essa clausula era inteiramente desne-
<:essaria. Por isso, 6 sabios juizes inglezes, si
algum dia eu tiver de ser enforcado ahi na
livre Inglaterra ((juod Deus avertat!) podeis
perfeitamente supprimir na sentenga o « pelo
pescogoD eo aate amorte)). Basta dizer-me :
«0 senhor vae ser enforcado». Nao precise
de mais para meu governo . . .
Litteratura Hermista
Nunca sera demais insistir, em se tra-
tando das poesias do sr. Hermes Pontes, na
necessidade de estudar, de emancipar o espi-
rito de toleimas amorosas, na necessidade de
ser homem, de pensar como homem, de viver
como homem, de collocar o orgulho masculine
acima de ephemeras paixonetas, de levantar
a fronte para os sonhos grandes, de algaro co-
ragao — pelas forjas de Vulcano! — acima das
mulheres ! Limite-se cada um a colhel-as ele-
gremente de passagem, como fructos madu-
ros, si f6r possivel ; nao sendo possivel, nesse
caso, buscar outras, outras e mais outras, pois
mulheres nao faltam neste mundo.
Todo homem, e certo, tem na sua vida.
um momento em que a por9ao inferior de sei^
ser se rende aos amavios do sentimentalismOr
mas esse periodo, para homens de pensa-
mento, passa. Passa, ou deve passar. Si nao
10 VKRDADES INDISCRKTAS
passar por si, compete a cada um dominar-se,
agarrar o coragao pelos ventriculos e subju-
gal o sem piedade ; encostal-o as paredes do
seu arcabogo como um adversario futil, um
troca-tintas piegas, e bradar-lhe, de maneira
que elle nao tenha coragem de replicar:
aAquieta-te, imbecil! Homem que nao tiver
for^a para tanto e indigno de pensar. Gastar
vida, papel e tinta a ruminar velhas magoas
amorosas, como no tempo do fallecido Casi-
miro de Abreu, pode agradar a meninas ane-
micas, avatares de Mimi e de Margarida Gau-
tier; mas nao pode absolutamente commover
a espiritos serios e a coragoes graves. Escri-
ptor que tiver nas costas esse crime deve peni-
tenciar-se, afastar-se quanto antes dessa via
mala perditionis e entrar nos caminhos da
contemplagao, do pensamento, das exaltagdes
masculas deante da Vida, procurando-lhe no-
vas interpretagoes ; ou assimilando as antigas
e cantando-as em versos que as meninas de-
testam mas a Immortalidade recolhera nas do-
bras da sua clamyde. O sr. Hermes Pontes,
em vez de procurar abeberar-se nas Castalias
antigas a nos legadas pelos espiritos immen-
sos, que forjaram todo o pensamento contem-
poraneo, dobra-se para dentro de si s6, con-
vencido de que s6 por si p6de encontrar em
I^ITTBRATURA HKRMISTA 11
si motivos d'arte. Esta provado que isso nao e
possivel ...
Quando sae de si e para mastigar ma-
goas iterativas, isto e, magoas que se repetem
numa monotonia de velhas traquitanas su-
bindo morros em cremalheiras. Percorra-se o
seu ultimo livro Miragem do Deserto. E' urn
deserto sem miragens nem oasis. Si salvarmos
Crepusculo, Buena Dicha, Nevoa e Attracgdo
do Abysmo, quatro composigoes soffriveis, o
resto da brochura e um desastre rimado. Nem
estructuraharmoniosa do verso, nem imagens
poeticas, nem elevagao de pensamento, nem
toques de sensibilidade, nada que se deva ri-
gorosamente exigir no livro de um poeta que,
ao seu apparecimento, foi saudado como um
heroe.
C^o monotono e o areal sem termo, insert©,
Entre um barbaro mar e uma terra selvagem. !
Como se v^, ja na primeira pagina, te-
mos um areal ainserto)) entre um mar e uma
terra. E' patente, tratando se de uma idea
vasta, a impropriedade do verbo inserir .
Nao se insere um areal entre a terra e o mar
como se insere um artigo entre um commu-
nicado e um annuncio. O sr. Hermes Pontes
inseriu mal o pobre areal.
12 VERDADES INDISCRETAS
Subi aos cumes e ao planalto,
para eximir-me
do meu peccado original
Onde estd a poesia destes versos ? Entao
um poeta sobe aos cumes para «eximir-se»
do peccado original? Isto nunca foi lingua-
gem de artista ; isto e linguagem de funccio-
nario publico. Si o sr. Hermes Pontes, no
exercicio de seu cargo de praticante dos Cor-
reios, requeresse inquerito administrativo para
eximir-se da responsabilidade de quafquer
delicto por ventura havido na sua sec9ao, faria
muito bem; e melhor faria ainda si deixasse
de escrever, para eximir-se da responsabili-
dade de tao maus versos.
Quern e Chopin para o sr. Hermes Pon-
tes ?
E' o Reflector-sonoro do gemido
Do Mar a debater-se contra o cdes .
U' o Interpretador do Arrulho e do Rugido,
Que entende o corafao inentendido
De todos OS tres Reinos Naturaes.
Chopin € o deus-mendigo, soberano
Das grandes almas sobrenaturaes ;
E' o escaphandrista magico do oceano
Das Tristezas, das Scismas e dos Id^aes. . .
O' quintessencia harmonica do Ruido !
O' Bramido ! O' Gemido !
Pobre Chopin ! Nao Ihe bastava a sua
melancolia immensa ! Nao Ihe bastava ter tido
I,ITT«RATURA HBSMISTA 13
a desgraga de ser amante de George Sand !
Faltava-lhe ainda soffrer a injustiga de ser ta-
chado de areflectora e «escaphandrista» pelo
sr. Hermes Pontes! Francamente, Chopin
tinha motives profundos para escrever a Mar-
cha funebre , . .
A verdade e que esta Miragem do De-
serto, quando nao e uma lamuria viscosa em
torno de raparigas voluveis, parece um pam-
phleto metrificado contra os grandes homens.
Visao de sabio, olhar de Medio, olhos de orago,
Vede que a natureza em madrasta se esfez
Ao por Beethoven surdo, e Desmosthcnes sfago,
E Milton c^go, em meio ao torvelhinho inglez !
E o c^go viu o que nao ve qualquer — o Poema. . .
E o surdo ouviu o que ningucm de outrora ouvia. . .
E o ®o declamou a Eloquencia Immortal I
Exactamente ! E por causa de tudo isso
o poeta escreveu prosa rimada, Satis loquen-
tiaSy sapientiae parum. Muito loquela para nao
dizer grande coisa. E' impossivel, porem, citar
tudo quanto e prosa neste livro de versos.
Salvo as excepgoes ja apontadas, seria neces-
sario citar todo o livro, principalmente a parte
sentimental, em que ha verdadeiras comichoes
de vulgaridades e chatices — o que, ate certo
ponto, e natural, poise impossivel hoje emdia
fazer versos amorosos sem cair de quatro pes
no atoleiro bituminoso das expansoes sedigas.
14 VERDADKS INDISCRBTAS
Por isso e melhor nao os escrever; ou, quando
nao seja possivel deixar de escrevel-os (diz
Horacio que certos sujeitos, si nao puderem
versejar, enlouquecem — aut insanit homoaut
versus facit), nesse caso fagam presente delles
as namoradas, mas pelos cornos de Satanaz !
— nao OS publiquem ! Raios nos partam, si um
•homem, attingindo a certa idade, nao tiver
obriga^ao de curar-se de toleimas lyricas. Nem
me venham dizer que Victor Hugo envelhe-
ceu a fazer versos de amor. Isso era muito in-
teressante no tempo delle, que appareceu em
1830. Hoje OS poetas, quando nao sao depu-
tados, causidicos e tabelliaes, envelhecem a
pensar coisas graves e bellas, como o grande
Verhaeren. Ja e tempo de sanear o campo lit-
terario, alimpando-o dessa malta chorosa e
menineira de Macieis Monteiros . . .
Moeda falsa e paradoxo. . .
O homem do dia e um certo Albino Men-
des, que. com grande estardalhago policial,
aqui chegOQ hontem, preso como fabricante
de moeda falsa. De todos os crimes, e o da
moeda falsa o menos antipathico, pelos menos
para nos outros que nao dispomos de capitaes
sujeitos a concorrencia da moeda nao autori-
sada por lei. Comprehendo perfeitamente que
OS capitalistas tenham ao moedeiro falso o
mesmo santo horror que tem os padres aos he-
rejes, o mesmo horror profissional que t^m os
medicos aos charlataes, o mesmo odio que t^m
OS verdadeiros escriptores aos plagiarios, a
mesma raiva que t^m as senhoras casadas as
mulheres de vida alegre. Tudo se resume em
afastar concorrentes . . . O odio do padre pelos
herejes provem menos do zelo pela salvagao
das almas do que do desejo de afastar um con-
corrente na lucta pela vida. Si os medicos
perseguem os outros charlataes, e mais porque
OS charlataes desviam dinheiro da sua bolsa
16 VKRDADES INDISCRETAS
<io que por amor a vida do seu semelhante .
Si OS escriptores bradam ds armas contra o.s
plagiarios, e por temerem que estes vendam
mais livros do que elles. Si, finalmente, as mu-
Iheres casadas detestam as meretrizes, e me-
nos por espirito de pureza do que por amor
proprio offendido e tambempor temerem cer-
tos prejuizos de caracter intimo . . . A Socie-
dade considera amor legitimo o casamento.
Tambem so considera legitimo o dinheiro que
leva a assignatura autbentica do poder publico;
de onde decorrem,para ella, o devere o direito
-de perseguir, por meio de certas autoridades,
OS individuos que tern bastante intelligencia
para imitar a moeda autorisada pelo Estado .
Ora, OS falsificadores de moeda estao para a
Moral assim como as meretrizes estao para o
Amor. Ha individuos eminentes que se revol-
tam contra o amor em familia e nem por isso
sao perseguidos. Como entao perseguir os que
se revoltam contra a moeda autorisada? Si nao
perseguem as prostitutas, que sao revoltadas
contra o amor autorisado pelo Estado, porque
perseguir os que se revoltam contra o dinheiro
autorisado pelo governo ? Tolerar mulheres
que (na opiniao da Sociedade) falsificam o
amor, e crime um pouco maior que tolerar
homens que falsificam moeda. Portanto, met-
ier na cadeia os moedeiros falsos, porque cor-
MOEDA FALSA E PARADOXO ... 17
Tompem o dinheiro, e nao metter egualmente
na cadeia as mulheres que corrompem os co-
ragoes, e incongruencia. O crime capital dos
moedeiros falsos e enganar o proximo, dan-
do-lhe dinheiro falso, para, dest'arte, viver a
custa da collectividade, sem auxilial-a com o
seu trabalho. As meretrizes tanibem vivem de
illudir o proximo, dando-lhe falso amor, nao
trabalhando, vivendo parasitariamente, e,
mais, disseminando calamidades e fugindo a
finalidade da mulher, que e a maternidade .
Como, pois, explicar que se deixem em paz
as cortezas e se persigam os moedeiros falsos.^
E' que a Sociedade nao e sentimental, mas
puramente interesseira ; em vez de cultivar o
amor prefere cultivar a avareza. Os artigos
do Codigo que perseguem os moedeiros fal-
sos foram inspirados por Harpagon. Uma das
faces mais curiosas da psychologia humana e
-esse respeito pelo dinheiro, a que nao esca-
pou o proprio Jesus Christo. No dia em que os
j udeus Ihe apresentaram uma moedacom a effi-
gie de Cesar e Iheperguntaram, com segunda
intengao, si era permittido pagar tributo ao Ro-
mano, elle, o pobre, o abnegado, o desprendi-
do, o desprezador pratico do dinheiro e refor-
mador da natureza humana, respondeu que era
dever dar a Cesar o que era de Cesar e a Deus
o que era de Deus — Reddite ergo qucs sunt
18 VERDADES INDISCRETAS
Casaris Ccesari et qucB sunt Dei Deo . . .
Elle teve piedade da adultera ; perdoou a Ma-
gdalena ; condemnou o divorcio ; teria per-
doado ao proprio Judas si o trahidor Ihe ti vesse
pedido perdao ; enfrentou o poder dos tetrar-
chas, a majestade dopovo romano, o orgulho
do Synhedrio e a crueldade dos supplicios ;
proclamou-se Deus deante de Jehovah e de
Jupiter Capitolino ! Mas deante da moeda
sonante, deante do dinheiro, do aureo dinheiro
que elle desprezava, do omnipotente, do in-
vencivel dinheiro que Cesar extorquia a seus
patricios, Christo nao tergiversou : mandou
dar o dinheiro a Cesar. . . Dizer que elle o fez
por medo e estulticia, porque a sua attitude
ulterior provou que elle nao temia nem astor-
turas nem a morte. Como explicar entao que
Jesus Christo tenharespeitadotantoaproprie-
dade, embora decorrente de actos de tyrannia
que deviam repugnar a sua natureza miseri-
cordiosa? Si elle era apenas homem, o facto
se explica facilmente pela sua nacionalidade
de judeu ; si, porem, elle era realmente Deus,
nesse caso entramos francamente no dominio
do mysterio. . . E aqui, insensivelmente, che-
gamos a umacuriosa conclusao : a Sociedade,
com todaasua hypocrisia, fechando os olhos
d prostitui9ao e perseguindo os moedeiros fal-
sos, nao faz mais que imitar a Jesus Christo !
Zodiaco
A critica ja disse o que se podia dizer do
Zodiaco, livro de versos do sr. Da Costa e
Silva. Toda a imprensa ja o elogiou e justa-
mente. O sr. da Costa e Silva sabe trabalhar
o seu verso. Conhece a sua lingua — avisrara
in terra aliena. Tern o sentimento da medida
e exprime-se com clareza. Evita trope90S e
pedrougos que costumam desfeiar livros de
poetas alias apreciaveis. O seu livro esta cheio
de aliteragoes e sonancias que sao novidades
para o nosso idioma. Aprendeu-as o poeta,
sem duvida alguma, em Emilio Verhaeren .
£^m altos brados desvairados,
Passam os ventos nos descampados,
As avalanches em turbilhao,
Imprecando, bramando, solujando,
Num coro formidando,
Pela amplidao.
Toda esta Ventania, que e trabalho de
20 VERDADES INDISCRETAS
'fino lavor, esta cheia de repercussoes verhae-
renianas. Por vezes, o amor a musica e a tor-
tura da onomatopea sans en avoir lairidjL^xxx
o poeta deslisar num vicio a que os gramma-
ticos chamam collisao, e vem a ser a repetigao
frequente da mesma consoante /«r^ obter cer-
ios effeitos onomatopaicos.
Exemplo, tirado do Redemoinho :
De repente
O redemoinho rapido, revolto
E desenvolto, volteia, envolto
No vortice envolvente
Do p6 que sobe sacudido, solto
No aereo ambiente.
Como se ve, e uma simples e pura logo-
machia. O sr. Da Costa e Silva e antes de
tudo um descriptivo ! Quanto seria preferivel
que elle fosse mais subjectivo ! E elle o pode-
ria ser muito mais, si o quizesse. A Escalada,
Nature za Sofffredora e A Vertigem dizem
bem alto da sua f6r9a emotiva. Nessas compo-
sigoes e que ha verdadeira poesia^ isto e, emo-
gao traduzida por imagens que nos dei-
xam entrever uma personalidade que vibra
deante do espectaculo do mundo. Rythm&s
da Vida, Imagens da Naturesa, Poemas da
Flora, Poemas da Fauna, Minha Terra e
alguns poemas de outras divisoes do livro sao
como OS poemas symphonicos do maestro
ZODIACO 21
Nepomuceno : admiraveis pelas difficuldades
technicas vencidas, mas frios e inemotivos .
Em resume : mais bemfeitos do que propria^
mente bellos. Os aspectos da Natureza que nos
apresenta nelles o sr. Da Costa e Silva chegam
ate nos inanimados como si nos fossem dados
por pelliculas cinematographicas. Levada
pelo seu horror a pieguice, suppondo que a
alma de um poeta nao nos interesse, elle im«
pessoalisa-se demasiadamente. E' um erro.
Um poeta vale justamente pelo bocada
d'alma, da sua alma, que elle for capaz de tra-
duzir em imagens. O essencial e que essa
alma seja elevada.
Tem-se estranhado que no livro ao sr.
Da Costa e Silva nao haja uma palavra para
a Mulher. Isso revela, a meu ver, uma face da
superioridade intellectual do poeta. Provavel-
mente (e nisto estamos de accordo) elle esta
convencido que a mulher e um thema gasto .
Ja inspirou o que podia. Ja deu o que tinha de
dar. . . O mundo, isto e, o ceo, as aguas, as
montanhas, as florestas e todos os animaes
(menos a mulher) e que ainda podem offere-
cer ao poeta motivos d'alta contemplagao .
Sob estes ceos azues e escampos, sob este sol
canicular, no meio desta vertigem de c6res, 6
impossivel espiritualisar uma mulher. Temos
de cahir fatalmente na sensualidade pura. Ora
22 VBRDADES INDISCRBTAS
a sensualidade nao p6de ser motive de poesia
verdadeira. Zarathustra, na primeira parte do
seu livro diz :
(cAmo a floresta. E' difficil viver nas ci-
dades, onde sao muito numerosos os que
estao no cio.
«Nao e melhor cahir entre as garras de
um facinora do que nos sonhos de uma mu-
Iher ardente ?
«E olhae, pois, para esses homens: oseu
olhar o testemunha — nao conhecem nada me-
lhor no mundo do que deitar-se com uma
mulher.
«Elles tem lama no fundo d'alma e ai
delles si a sua lama tiver espirito!
«Si ao menos fosseis uma besta perfeita,
mas para ser uma besta e preciso ter a inno-
cencia !
« Aconselhar-vos-hei eu extinguir os vos-
sos sentidos? Aconselho-vos a innocencia dos
sentidos. »
Assim falava Zarathustra. Mas comoche-
gar a ter a innocencia dos sentidos sob a ac9ao
de um clima que a todos os momentos nao
convida a outras attitudes sinao as da sensua-
lidade? Naturalmente frio, impassivel por in-
dole (e a objectividade exaggerada dos seus
versos oprova exuberantemente), o sr. Da
Costa e Silva nao podia ser um exaltado
ZODIACO 23
deante da mulher. Como Zarathustra, elle sabe
por instincto que a exaltagao deante da mu-
lher e signal de pouco saber. <(E como sabe-
mos poucas cousas, diz Zarathustra na segun-
da parte, amamos do fundo do cora9ao ospo-
bres de espirito, principalmente quando sao
mulheres mogas.» Assim falava Zarathustra e
assim e que pensa provavelmente o sr . Da
Costa e Silva. Porque censural-o por tal? Dei-
xemos que o censurem as mulheres . . .
A castidade do nu
Assistindo hontem a exhibigao de uma
fita, Castidade, notava quanto ainda estava-
mos longe daquella ingenuidade grega que
em Sparta permittia a rapazes e raparigas, in-
teiramente nus, participar de jogos gymnasti-
cos. Nao nos esque9amos de que gymnos
quer dizer nu. A fita a que alludo e tudo
quanto ha mais simples e puro. Tanta pureza
chega a ser ate monotona, dessa monotonia
de templos protestantes, brancos e desnudos,
a mais alarmante das formas de monotonia at6
hoje inventadas. Entretanto, antes de exhibir-
se a fita, foi necessario submettel-a a alta e
esclarecida apreciagao da policia, que e, entre
nos, a ultima autoridade chamada a proferir
o seu veredictum em materia de esthetica. Fe-
lizmente a policia, segundo parece, nao achou
indecentes zs poses plastiques de Miss Andrey
Munson .
Hb VBRDADES INDISCRKTAS
Para se ter idea da forga dos preconcei-
tos christaos de que estamos todos imbuidos,
basta dizer o seguinte: Miss Musson, que se
apresenta candidamente nua, nuncada a fren-
te para o espectador; esta sempre de costas;
ou quando muito, de perfil !
Ora, senhores, eu nao sei si a parte tra-
zeira de umamulhersera mais casta do que a
dianteira . . . Restos ainda de preconceitos, os
mesmos preconceitos que nos fazem nao co-
rarmos deante de um pirralho nu, mas nos
obrigam a disfar9ar e olliar para outro lado,
si e uma menina de dois annos. . .
Uma vez que o corpo seja bello e esteja
€m attitudes castas, qualquer das suas faces 6
digna de ser vista por quern quer que seja .
Naturalia non sunt turpia .
A educagao catholica, baseada em pre-
conceitos quasi bi-millenares, incute no nosso
^spirito que a idea de nudes e identica a de
immoralidade. Ora, antiquissimos canones,
do tempo de Santo Agostinho, diziam que o
«corpo humano e a maisbella das creagdesde
Deus.» Mas a reacgao do christianismo con-
tra o mundo romano inspirou a seus prosely-
tos o horror pelo nu, como por tudo que con-
stituia a serenidade olympica da Belleza anti-
^a. Os christaos ricos, depois de dar os seus
haveres aos pobres, com estes se nivelavam:
A CASTIDADB DO Vt 27
e todos, ligadospelo mesmo ideal de salvar a
sua alma derrubando os idolos, vinculavam-se
no mesmo horror inconsciente pela nudez e
pelos banhos.
Quebravam-se idolos; destruiam-se am-
phitheatros; derribavam-se altares; incinera-
vam-se pergaminhos; democratisava-se o mun-
do. E como as thermas eram os logares em
que homens e mulheres se reuniam para to-
mar banho e ser friccionados com perfumes
da Arabia e toda sorte de unguentos precio-
sos do Oriente, os christaos derrubavam as
thermas. certos de que exterminavam focos de
perdigao, mal sabendo, na sua cegueira de
illuminados, que o exterminio de cada um
desses f6cos de perdi9ao do espirito traria a
abertura de um foco de pestillencia para des-
truigao do corpo. Mas . . . ^md prodest ho-
mini si munduin nniversum lucretur, anima
vero sua detrimentum patiaturf A philo-
sophia da iMiTAgAo de Christo e o reflexo
daquelles tempos barbaros ...
A Renascenga reagiu contra esses pre-
conceitos. Em Franca chegaram a abrir-se ba-
nheiros publicos onde homens e mulheres se
banhavam mis. Mas veio a contra-reac9ao do
Grande Seculo, e tudo recaiu no que era ante-
riormente. Tanto assim, que, nas vesperas da
Revolu9ao Franceza, raras eram, em Paris, as
28 VERDADES INDISCRETAS
damas da aristocracia que tivessem banheira
no seu gabinete de toalete 1
Hoje ja existe por toda parte uma pro-
ficua reac9ao contra semelhantes preconcei-
tos. A Allemanha, a barbara Allemanha, que
esta sempre na vanguarda de todas as campa-
nhas civilisadoras, da o bello exemplo de lu-
ctar contra isso com esse enthusiasmo e com
essa disciplina de que ella tem o segredo. O
lago de Wannsee, nos suburbios de Berlim,
e um freibad, banho popular onde se encon-
tram diariamente rapazes e mo9as, de calgoes
justinhos, folgando na agua, como tritoes a
porfiar com as nymphas . . .
Mais ainda, o dr. Kuster, velho medico
e conselheiro intimo de medicina, fundou em
Berlim, em 1909 a sociedade dos amigos da
lu2, o Freya-Bund, que defende o direito de
andar nu. Essa sociedade possue uma revista
interessante, Der Licht-Freund, e um terre-
no rigorosamente fechado, nos suburbios de
Berlim, onde os associados de ambos os se-
xos passam diariamente algumas horas com-
pletamente nus, jogando tennis, criquet^ etc.
Nao e qualquer pess6a admittida como socio;
para tanto, o candidato sujeita-se a minucio-
sa syndicancia sobre a sua vida, os sens habi-
tos, o seu caracter, os sens antecedentes mo-
raes, etc.E' precisoserhomem, ou mulherde
A CASTIDADE DO NU 29
incorruptivel moralidade para poder andar nii
e ser socio do Freya-Bund. As vantagens hy-
gienicas e espirituaes desses exercicios de nu
ao ar livre sao extraordinarias e indiscutiveis.
Ainda estamos longe de poder fundar
uma sociedade nesses moldes. Os nossos ra-
pazes sao facilmente inflammaveis e mal edu-
cados para formarem uma sociedade como a
do dr. Kuster. Alem disso os nossos precon-
ceitos, nesse sentido,sao ainda muito vivos.
Em compensagao, as meninas vao ao cinema
ver umas detestaveis prostitutas como Pina
Menichelli, umas repugnantes tuberculosas
como Francesca Bertini, e leem as frioleiras
hediondas de Marcel Prevost e as babosei-
ras idiotas de Madame Gyp . . .
^
O Bacillus Lyrlcus
Chamo a attengao dos poderes compe-
tentes, devidamente representados pelas re-
partigoes encarregadas de combater endemias
nocivas ao desenvolvimento da raga, para a se-
cular endemia lyrica que amenisa a nossa ju-
ventude. Emquanto as nossas profissoes re-
muneradoras definham por falta de bragos^
j ovens patricios, atrazados, cretinisados pela
absorpgao lenta de Casimiro de Abreu (into-
xicagao feita atravez de muitas geragoes de
poetas amorudos e trovadores imbeds); re-
tardados no seu desenvolvimento d'homens;
dissorados naquelles centros do psychismo
superior em que se forjam as complexas armas
espirituaes, merce das quaes se affirma a digni-
dade masculina, ou seja — a soberania da
macho sobre a femeada sua especie; jovens
patricios dao aos seus contemporaneos o de-
primente espectaculo que e um grupo de pe-
32 VERDADES INDISCRETAS
quenos animaes dominados por uma especie
de cio choroso e amulherado, sem coragem de
affirmar-se perante o objecto de seus desejos
sinao por meio de estrophes plangentes, de
timbre obsolete e accordes infantis, versos sem
virilidade, gemidos de emasculados e ais poe-
ticos que estariam ao alcance de qualquer eu-
nucho do Sultao, si aos eunuchos dado fosse
commetter o desaforo de rimar versos a rapa-
rigas .
Esta nos casos o sr. Guilherme de Al-
meida, poeta paulista, que acaba de dar a es-
tampa um volumezito de versos que tem o
tituio melifluo e lambisgoia de — Nos. E' a
historia massante e frivola dos amores do
poeta e uma rapariga qualquer. Litteraria-
mente sao versinhos bem medidinhos e cho-
chinhos, sem uma so idea, sem nota emotiva,
sem nenhum arranco para ospincaros do ideal,
sem signal desses impetos luminosos que
arrastam uma alma para as espheras altos e
grandes em que as estrophes de um poema
esvoa9am como fagulhas que rastream de au-
rifulgencias todo o espago . . .
Ora, uma vez que nao se pode dizer nada
novo acerca do amor, para quepublicar livros
tao anemicos?
O B4CII.I,US I,YRICUS... 33
Quando, velhos e tristes, na memoria
Rcbuscarmos a triste e velha historia
Dos nossos pobres cora95es defunctos,
Que estes versos, nas horas de saudade,
Prolonguem numa doce etemidade
Os poucos mezes que vivemos juntos.
Em que e que interessard a humanidade
a historia dos beijos, abra90s e correlatas pa-
tifarias que o poeta e sua amada fizeram jun-
tos? Dirao talvez que esse amor e um desses
sentimentos candidos que pov6am de illusoes
loda uma adolescencia e projectam claroesate
para alem da edade madura. Mas isso mesmo
nao desperta interesse a nenhum espirito se-
rio. Nao digo novidade nenhuma, affirmando
que taes sentimentos puros lyriaes sao, na
sua essencia, a mesma vibragao dynamica que
leva um jumento a correr um dia inteiro pe-
los prados atraz da sua femea, e transfigura
um cavallo, eri^ando-lhe a crina, tornando-lhe
o pello reluzente, dilatando-lhe as narinas, fa-
zendo-o nitrir, pondo-o d'olhos accesos como
<:arbunculos em brasa, vibratilisando-lhe to-
dos OS musculos, que adquirem malleabilidade
<ie laminas d'a90, quando o seu lan9arote o
poe em contacto com egua de boa raga. Ora.,
collocados em paralello os amores do cavallo
e OS amores humanos, os doicavallo sao muito
34 V^RDADES INDISCRETAS
mais bellos do que os namoros de poetinhas
que nem ao menos tern coragem para affir-
mar-se perante as suas dulcineas.
Sonhamos . Quando um dia eu for velhinho ,
Hei de encontrar-te velha no caminho. . .
E juntos, cambaleando, aos solavaucos,
N6s levaremos, pela tarde calma,
Toda uma primavera dentro da alma,
Todo um inverno de cabellos brancos. . .
Francamente, e ou nao e infinitamente
mais interessante o cavallo? O cavallo, quan-
do Ihe chega o tempo, ama, simplesmente,
animalmente, bellamente, como sedeve amar
quando se tem boa saude e prazer de viver.
Ama e nao faz versos. Ninguem que se preze
vae dizer a sua diva que algum dia hao de an-
dar cambaleando e aos solavancos pelas es-
tradas, como quem volta d'alguma farra bem
regada a zurrapa e alimentada a tremogos.
Vaes lendo. E, emquanto a tua mao folheia
O livro, eu vejo que, de quando em quando,
Estremecendo, sacudindo, arfando,
Teu corpo todo num delirio anceia.
Mas, senhores, tudo isto e vulgar. Qual-^
quer costureira esperta esta sujeita a semelhan-
tes accidentes. Toda a gente esta mais ou me-
nos farta de saber que uma rapariga quando
anda de amores com qualquerrapazelho (uma
O BACILLUS LYRICUS. . . 35
vez que em casa Ihe faltem os paes com o cor-
rective moral do chicote) le sempre alguns li-
vritos que Ihe empresta o seu namorado. No
caso vertente, quero dizer, no caso da rapari-
ga que anda enrabichada pelo poeta, si ella^
durante a leitura, estremece, sacode-se, arfa e
tern o corpo todo a delirar, como diz elle na
sua algaravia de collegial cheio de sentimen-
talismo, ja se sabe o que a rapariga estara a
ler em extase: si nao for Les Uemi-Viergbs,
do imbecilissimo e engenheirissimo Marcel
Prevost, sera com certeza aquella scena do
Primo Basilic, em que Ega de Queiroz nos
mostra o canalha do romance, durante as ex-
travagancias com a prima, na equivoca e su-
percivilisada posigao de quem se levanta de es-
tar de joelhos, ainda meio incendiado,alisando
OS bigodes e lambendo os beigos. . .
Felizmente, ahi pelo meio do volume^
da- nos o poeta a grata nova de que a rapariga
se foi embora.
Quiz dar-te mais : tu nada mais quizeste,
Pelo bem que te fiz pade90 agora
A saudade do mal que me fizeste.
A la bonne heurel A rapariga safou-se .
Tera feito bem? Certo. fez bem a si propria,
mas fez, sem o querer, grande malao poeta e
is letras patrias. Ficamos sabendo que a vida
36 VKRDADBS INDISCRETAS
de ambos era assim uma especie de vida de
canarios em viveiro :
Kra assim : era beijo sobre beijo,
AbraQO sobre abra9o. . . Um s6 desejo
Nunca tiveste que nao fosse o meu.
O mal do joven rimador paulista foi sup-
per ter descoberto a polvora quando beijava
e abragava a sua bella Rosina. Considere o
sr. Guilherme de Almeida que os amores de
toda a gente sao perfeitamente eguaes aos
seus amores. . . E' sempre assim: beijo so-
bre beijo, abra^o sobre abrago e. . . le reste
en consequence. A esse respeito nao ha mais
novidade alguma. Tudo quanto se p6de fazer
em materia de amor ja esta feito, E, si o sr.
Guilherme de Almeida f6r capaz de inventar
acerca deste particular algum prazer novo,
pode tirar patente de invengao e garanto-lhe
que tera estatua ao lado dos maiores genios
da humanidade. Apenas com uma condi9ao :
nao fazer versos molhando a penna em agua
de fl6res de laranjeira assucarada, como o
mallogrado cretino Casemiro de Abreu, cuja
alma tenha Satanaz sempre entre os cornos...
paradoxo legal
Olympia do Oriente e uma senhora que
se tern annunciado ao mesmo tempo como
cartomante e modista. Um destes dias, porem,
a policia visitou o escriptorio de Olympia, a
rua da Assemblea, onde nao encontxou nem
tesouras, nem fazendas finas, nem f6rmas de
chapeo, nem manequins. Em compensagao
encontrou um baralho de cartas de tirar a sor-
te, um gallo e uma figa ... A policia empal-
mou o baralho, o gallo e a figa — «instrumen-
tos de superstigao)) — e sahiu convencida de
haver ganho o seu dia. Olympia, consideran-
do a sorte do baralho, do gallo e da figa, e
nao possuindo infelizmente outra figa maior
para offerecer a policia, achou mais prudente
requerer habeas-corpus preventivo — o que
fez. Ojuiz pediu informa9oes ao Chefe de
Policia, que Ih'as deu logo, minuciosas e ter-
minantes. O principal argument© em que o
38 VBRDADES INDISCRBTAS
Chefe de Policia se estriba para perseguir
Olympia e «principalmente a aprehensao de
cartas e objectos de superstigao que arreca-
dou, como o gallo, a figa, etc.* (Textual).
Ora, senhores, o dr. Aurelino, perseguindo
as cartomantes, e muito mais antipathico do
que o cardeal de Torquemada quando fazia
queimar herejes, judeus, criminosos politicos,
feiticeiros, adivinhos, bruxos e bruxas nos
quemaderos das Hespanhas. O cardeal de Tor-
quemada, o Conde de Tolosa, o Geral dos
Dominicanos, Mestre Conrado de Marpurgo
e Sua Santidade o Papa perseguiam a super-
stigao em nome de um principio — principio
egualmente supersticioso se oquizerem — mas
sempre um principio. As Constituigoes Apos-
tolicas eram perfeitamente logicas perseguin-
do nigromantes, cartomantes, etc.. A Consti-
tuigao da Repnblica, nao. O art. 167 do Co-
digo Penal Brasileiro e que e uma excrescen-
cia na legislagao republicana. Ou aRepublica
reconhece officialmente uma seita religiosa e
entao pode perseguir as outras seitas e as su-
perstigoes congeneres em nome da seita offi-
cial (o que me parece perfeitamente licito), ou
entao nao reconhece officialmente nenhuma
seita e nesse caso tem de cruzar os bragos
deante de todas. Perante a logica e a razao
O PARADOXO LEGAL 39
liumana, um crucifixo, como instrumento de
<:onsolo e de milagres, naotem a menordiffe-
reiiQa de uma figa. O que faz o crucifixo set
<iifferente de uma figa 6 a devo^ao de cada
um. Objectivamente, o crucifixo e a figa, como
instrumentos de religiao, identificam-se. Eu
admitto e respeito o crucifixo, porque desde
pequeno me inculcaram essa crenga; tambem,
ci, intimamente, nao deixo de ter certo res-
peito pela figa, que nos livra de muita coisa
inexplicavel . . . Como o dr. Papus, creio em
tudo quanto nao vejo e respeito tudo quanto
dgnoro . . . Ha individuos que nao se ajoelham
deante de um crucifixo, mas tremem deante
de um gallo e cobram animo deante de uma
figa. Agora pergunto eu : a Republica, que
nao admitte officialmente o crucifixo, pode
perseguir officialmente a figa? Creio que nao.
A figa so pode ser perseguida em nome do
crucifixo catholico, do crescentilunio mussul-
mano, etc.. — Persigo em nome da sciencia?
respondera a Policia. — Perdao! Que sciencia ?
As sciencias exactas? O Estado nao tem nem
p6de ter preferencia por sciencia alguma. Li-
vre e o ensino; liberrimas, as opinioes. O
art. 157 persegue o espiritismo em nome da
sciencia, ji que o nao pode perseguir em no-
40 VKRDADES INDISCRKTAS
me da Religiao. Nao o pode perseguir abso-
lutamente. Ha muita gente que considera o-
espiritismo uma sciencia. O espiritismo 6, a.
meu ver, uma seita religiosa; portanto so pode
ser perseguido em nome de outra seita. Scien-
cia e razao; religiao e sentimento; nao se
p6de perseguir uma seita religiosa em nome
da sciencia, porque isso seria condemnar o~
sentimento em nome da razao. Eu nao de-
fendo o espiritismo da rua Rudge, nam a figa.
de Olympia do Oriente. E' razoavel que o Es-^
tado, sendo o mais forte, persiga o espiritis-
mo e a figa, que sao mais fracos. O que, po-
rem, se deve exigir e que o Estado se faga
frade para poder perseguir com justiga e lo-
gica. Que e superstigao theologicamente? Su-
persti^ao e o facto de attribuir alguem a cer-
tas causas certos effeitos nao proporcionados
com as causas a que sao attribuidos. Attribuir,
pois, a uma figa o poder de inspirar paixao-
ou de livrar de quebrantos e uma superstigao,
que a policia persegue; mas nesse caso por-
que nao persegue tambem os que ajoelhanv
deante de uma cruz afim de pedir allivio para,
as almas do Purgatorio ? Perante a Sciencia,
que parece ser o sustentaculo da policia, ha.
tanta rela9ao entre uma figa e uma paixao,
como entre uma cruz e as almas do Purgato^
d PA.RADOXO h^Gkl, 41
rio, entes cuja existencia nao esta scientifica-
itiente provada, experimentalmente demon -
strada. Nao protest©, portanto, contra aperse-
guigao; saliento apenas a falta de logica poli-
cial, aponto a incoherencia republicana.
Homens e abelhas
Escrevendo La Vie des Abeilles, fez
Maurice Maeterlinck um verdadeiro poema em
torno da vida dessas « castas bebedoras deor-
valho — chastes buveuses de roseey), como diz
elle. Nao ha, em todo o genero animal, entes
que mais humilhem os homens. Ja nao me re-
firo ao facto das abelhas so produzirem mel,
ao passo que os homens, ordinariamente, s6
distilam fel. O extraordinario, incomprehensi-
vel nas abelhas e a sua abnegagao. Quando ve-
mos um enxame abandonaruma colmeia e sup-
pomos que sao as novas abelhas que vao para a
Vida,enganamo-nos.E' justamente o contrario
quese da. As velhas abelhas, as que ja traba-
Iharam, deixam a nova gera9ao o fructo de seu
trabalho — a cera e o mel — e partem sem des-
tino certo, a construir nova colmeia, sem sa-
ber em que arvore iraorepousar,nem que ven-
davaes virao colhel-as durante a viagem. Nao
44 VERDADES INDISCRETAS
e mysteriosa essa abnegagao? Entre os ho-
mens, nem os paes sao capazes de ser tao ab-
negados para com os proprios filhos. Ja nao qui-
zeramos n6s que os paes abandonassem aos fi-
lhos, de um dia para o outro, todo o fructo do
seu trabalho. Mas seria encantador que
ao menos as velhas geragoes que nos gover-
nam, e cujo governo absolutamente nao nos
satisfaz, abandonassem OS seuspostos as no-
vas geragoes, compromettendo-se estas a fazer
o mesmo ageragao que daquiavinte ou trinta
annos estivesse em condi9oes de fazer a feli-
cidade do paiz? Isto me parece justo, porque
o governo deve fazer a felicidade do paiz.
Mas que e o paiz? Sao os velhos? Nao.
Sao OS novos. Os velhos estao perto de par-
tir para nunca mais voltar. Pertencem ao pas-
sado. A nos cabe, por direito, a direc^ao do
presente, e, por dever, a previsao do futurO .
Portanto, o paiz somps nos.
i
A festa da Melancolia
As nossas batalhas de confetes se notabi-
lisam por nao terem confetes. Nesse caso,
uma vez que os confetes entram nessas bata-
lhas com tanta parcimonia, d^em-lhe outro
nome : aBataIha dosEmpurroes». Chamarba-
talha de confetes a uma festa em que elles
pouco apparecem e falta de bom senso. yap-
pelle un chat un chat et Rollet un frippon,
como dizia o defunto Boileau . . . Ha ainda um
outro nome que se podia perfeitamente ajustar
a esses ajuntamentos de povo na Avenida: «a
festa da Melancolia. » Quem quizer ter idea da
grande, da immensa melancolia nacionaldeve
vir ver uma batalha de confutes. Entao ter^
occasiao de observar aspectos curiosos ; na
calgada, bem no meio-fio, homens e mulheres
enfileiradas, algumas com creanga de mamma
ao coUo, e olhando todos, muito serios e
muitos graves, para os carros onde tambem
46 VERDADBS INDISCRETAS
passam cavalheiros muito graves ao lado de
damas orravissimas. Hontem ate havia um se-
nhor de tratamento fcomo dizem as donas de
pensao) vestido de preto, sobrecasaca, collete
branco e cartola lustrosa, sim, senhores, cartola
luzidia a meia-noite em batalha de confetes !
Mas prosigamos : na calgada, gente seria ; nos
automoveis e carros, com algumasexcepgoes,
gente que apenas sorri (e que sorriso de
ra9a fatigada de aindanao existir! . . .), gente
que apenas sorri e passeia como si estivesse
de tarde na Avenida Beira-Mar. Nos interval-
los deixados pelos vehiculos e ainda nos
passeios, vem entao a multidao dos passean-
tes, pobre gente que se aperta e se acotovela...
para divertir-se. E' nesses logares que se en-
contram os rapazes da moda, 2,jeunesse doree.
A nossa. jeunesse doree vem para a Avenida dis-
posta a divertir-se muito. Como, por^m, nao
ha entre elles ideas a respeito de diver-
soes, nem dinheiro com que possam custear
novidades, entao adoptam um meio facil e
economico de divertir-se : formar o que se
chama um amonomio» e sahir ululando coisas
em calao. E' a mais enc3inta.dora, jeunesse do-
ree deste continente. A nao serem esses rapa-
zes, que dizem chufas as senhoras e dao alguns
berros de meia em meia hora, os demais pas-
seantes andam pela Avenida, serenamente
A FBSTA DA MBI.ANCOI.IA ... 47
e gravemente, como se perlustrassem alame-
das de S. Joao Baptista ou do Caju em dia
de Finados. Alids ja tenho observado que
nos cemiterios, em dia de Finados, ha, entre
OS visitantes de tumulos, certa alegria algo
elegante, talvez per ser discreta. . . De-
mais, dd-se um facto : em dois de novembro
as fl6res sao mais abundantes nos Campos
Santos do que os confetes e serpentinas ahi
na Avenida em dias de festa . . . Mas fagamos
ponto aqui. A nossa melancolia e tal, que co-
mecei estas linhas com a intengao de tratar
de uma festa carnavalesca e acabo tratando
de coisas funebres. Nao ha como resistir aos
fados. . .
Carne para canh^o
Os Jornaes censuram a attitude de urn ra-
paz que, ainda se arriscando a per der os direi-
tos de cidadania, allegou motives de crenga
religiosa para ficar isento do sefvigo militar .
Nao ha muitos dias o juiz da 1? vara de-
negou habeas-corpus a um outro que preten-
dia fugir ao servigo militar pela mesma porta
que tem dado entrada no governo de estados
a varios cidadaos fracamente prestigiados nas
urnas. Aventuro-me a perguntar si podemos
condemnar tao soberanamente esses rapazes
pelo facto denao quererem perder doisannos
inutilmente, a ouvir toques de cornetas e ru-
fos de tambores, a enervar-se na vida dissol-
vente das tarimbas, para sairem aptos a serem
o que seriam fatalmente, sem dois annos de
caserna : carne para canhdo . . . Sim, os bra-
sileiros estao-se preparando exclusivamente
50 VSRDADES INDISCRETAS
paraisso. Um exercito, salva a opiniao dosge^
neraes pacificos e dos poetas bellicosos, nao-
se compoe apenas de soldados e officiaes. Or-
gamento da guerra tern duas verbas : Pessoat
e Material. Ora, por emquanto estamos lyri-
camente preparando pessoal, sem cogitar do
materiaL isto €, das carabinas, das bayonetas^
dos canhoes pezados, dos canhoes leves, das.
metralhadoras, dos transportes, das ambulan-
cias, dos viveres, dos fardamentos, dos medi^
camentos, dos arreios para a cavallaria, da re-^
monta, emfim de tudoisso que justifica aexis-
tencia de uma repartigao pomposa e dispen-
diosa que ac6de ao nome de Intendencia da
Guerra. Si tivefmos de pelejar contra qual-
quer povo — quod Deus avertat — dentro de
pouco tempo ficaremos desprovidos de espin-
gardas e de polvora ; de maneira que os corn-
bates terao de cessar da nossa parte, nao tal-
vez por falta de combatentes, mas por falta de
armas. A forma9ao dos exercitos hoje em dia
deixou de ser problema de heroism© para ser
questao economica, financeira e industrial.
A Inglaterra poude levantar em pouco
tempo um exercito de cinco milhoes de
homens, porque tinha la na sua ilha os recur-
sos industriaes capazes de armar esses cinco
milhoes de individuos. Os turcos sao soldados.
por indole, por tradi^oes e por educa9ao ;
CARNB PARA CANHAo. . . 51
aldm disso sao mais numerosos que os ingle>
zes e nada disso os impede de serem derrota-
des. Porque? Porque nao t^m armas e nao
t^m a consciencia militar moderna. Os russos
sao bons soldados e numerosos como pragas
de gafanhotos, o que nao impediu que elles
tivessem de ser derrotados por Hindenburg,
esse avatar dos velhos deuses scandinavios»
essa moderna e truculenta encarna9ao dos
Wottans e dos Sigfrieds, paes e irmaos de
Walkyrias ... A Franca, a AUemanha, a In-
glaterra, o Japao, a Italia e os Estados Unidos
sao potencias de guerra, porque sao potencias
industriaes,economicas e financeiras. Nos que-
remos ser potencia respeitada so porque dis-
pomos de academicos enthusiastas e de poetas
eloquentes. Si a Italia nao tivesse os seus esta-
leiros e fabricas de Spezzia e de Liorno, a ima-
ginagao de Gabriel d' Annunzio nao seria mais
efficiente do que os discursos do sr. Olavo Bi-
lac. . . Deixemo-nos, pois, depatranhas e pa-
triotadas. Emquanto nao formos capazes de
aproveitar o ferro de Minas para fundirmos
coura9as de navios e canhoes para as nossas
fortalezas e montanhas, inutil serd pensar em
formar exercito. A campanha que se fez em
prol da forma^ao de contingentes de parada,
52 VSRDADES INDISCRETAS
seria muito mais util e proficua, si tivesse sido
feita em prol da abertura de fundi^oes de ferro
para as carretas, bronze para os canhoes e
ago flexivel para a lamina das espadas . . .
Edouard Drumont
E4ouard Drumont, que acaba de fallecer
em Paris, era o que se p6de chamar um ho-
mem. Iniciou a sua carreira de publicista sob
a direc9ao de Emile de Girardin de quern diz
elle que era muito parco nos ordenados que
pagava, mas generoso quando se tratava
de pagar transportes para os seus reporteres
fazerem algum service de importancia. Dru-
mont foi, em toda a suavida, um extraordina-
rio homem de combate. O primeiro livro com
que appareceu, em 1881, La France Juive,
provocou uma celeuma espantosa em Paris .
E' curioso acompanhar o interesse que AI-
phonse Daudet tinha por esse livro, que elle
ja conhecia antes de publicado. Drumont, du-
rante muito tempo antes da publica9ao do li-
vro, treinava-se no jogo da espada, na sala
d'armas de Daudet. Eram diarios os exerci-
cios que elle fazia ora com o proprio Daudet,
54 VBRDADBS INDISCRKTAS
ora com Albert Duruy, ora com outros ami-
gos. Diarios e prolongados. Quando salam da
sala, havia pelo menos meia duzia de floretes
quebrados. Madame Daudet, que ignorava os
motivos occultos daquelles exercicios, nao po-
dia comprehender a raiva com que o joven
jornalista, se atirava a elles. Daudet costuma-
va dizer : <!.Eh! Drumonf a raison de s entrai-
ner. Le livre qu il est en train de pub Her sera
une grosse affaire. m Que livro seria esse? La
France Juive. Exposto d venda, contra a ex-
pectativa do autor e dos amigos, os jornaes
nada diziam. Daudet os percorria a todos dia-
riamente. O livro iria morrer assim? Um livro
como aquelle, dois volumes repletos defactos
e informagoes ineditas sobre os altos banquei-
ros dajudiaria, sobre os ministros vendidos
aos judeus, sobre os jornalistas venaes . . .
Mas uma bella manha, Alphonse Daudet
abriu o Figaro, anciosamente comosempre, e
la encontrou a nota official da folha, o famoso
grypho, que hoje e escripto por Alfred Capus
e que naquelle tempo era escripto por Ma-
gnard, o primeiro successor de Villemessant .
O grypho, por entre elogios ao talento do au-
tor, fazia veladas defesas das victimas de Dm-
mont, muito ao de leve, com muita amabili-
dade, com luvas de pelliea, alisando o pello
ao autor, extranhando, pedindo licenga para
SDOUARD DRUMONT 55
lextranhar a acrimonia com que eram tratadas
certas personalidades eminentes do regimen
Tepublicano . . . Alea facta erat. No mesmo
dia OS exemplares do livro voaram. E no dia
tseguinte o sr. Arthur Meyer, director do Gau-
loisy mandava suas testemunhas a Drumont .
Este acceitou radiante o desafio. Emfim, ia ter
<ieante de si um judeu, um judeu authentic©
^m cujas carnesia entrar a lamina da sua espa-
<ia. Mas Arthur Meyer, durante o assalto, con-
tra todas as regras da cavallaria, conseguiu
agarrar com a mao esquerda a espada de Dru-
monte feril-o assim,eitrai5ao,na coxa do mesmo
lado. Ora, a Fran9a e a mae da cavallaria. Os
jornaes datarde noticiaram o caso. Constituiu-
se um tribunal de honra, para examinar le coup
de la main gauche. E o proprio Meyer teve de
reconhecer que procedera muito mal... D'ahi
para ca, Edouard Drumont foi em Franga, du-
rante quasi metade de um seculo, um Torque-
mada armado de uma penna, em vez de estar
^rmado com as fogueiras da Inquisi^ao. Toda
^ sua vida foi consagrada a combater os ju-
deus. O seu nome tornou-se popular em toda
^ Franga, atravez do lapis dos caricaturistas,
<}ue nao se fartavam de pintal-o deante de um
bouillon, espetando judeus com um garfo im-
menso e devorando-os como um cannibal . . .
JElle p6de ter commettido erros e excessos
56 VERDADES INDISCRBTAS
nos combates que feriu. Os seus livros e os
seus artigos de jornaes eram violentissimos. O
que, porem, ninguem pode negar e que este
homem foi um dos mais sinceros, valentes e
apaixonadps francezes que jamais viveramsob
o ceo de Franga .
A Academia em ses$llo
A Academia Brasileira de Letras esta em
f6co. As tres vagas ja existentes tern prpdu-
zido o surprehendente effeito de colloc^l-^ na
berlinda jornalistica, durante quasi dois m^zes.
Deixemos, entretanto, de lado a quesjap das
candidaturas e tratemos da sessao academic^
realisada ha dois dias .
Compareceram a reuniao ^penas seis im-
mortaes, que estiveram a cavaquear sobre o
regulamento, sobre a politica, sobre a batalhsi
de Verdun, sobre a crise economica e sobre o
DiccioNARio DE Brasileirismos. Uma sessao
encyclopedica, que acabou, como sempre, in-
fructifera e inoffensiva. Porque as sessoes da
Academia tem isto de bom: ordin&riamente
sao infructiferas. Praticamente, valem tanto
como as sessoes do? clubes literarios dos rapa-
zes das provincias ...
Pe9amos a Deus que a Academia seja
58 VISRDADBS INDISCRETAS
sempre assim: pregui^osa e inutil. Da unica
sessao em que os academicos se reuniram
para resolver coisas, sahio um monstro: a re-
forma orthographica. A pretexto de facilitar
o ensino da escripta, nivelou a Academia os
intellectuaes e os vendeiros. Que nosimporta
a nos, senhores, que o vendeiro ali da esqui-
na escreva caxorro com :*: ? Devemos acom-
panhal-o ? Nao . Deixemos-lhe a inteira res-
ponsabilidade da sua graphia lusitana . . .
A Academia pensa de modo contrario .
Uma vez que o vendeiro ache difficuldade no
emprego do ph, o que os intellectuaes devem
fazer nao e disseminar a instrucgao, afim de
instruir o vendeiro mas sim, desaprender a
sua orthographia e escrever como elle! Chama-
se isto — simplificagdo orthographica .
Os academicos nao viram que a escripta
dos intellectuaes e uma das maneiras pelas
quaes elles se destinguem dos demais homens.
Nao comprehenderam que a Academia, refor-
mando a orthographia, democratisava-se, isto
^, achatava-se ; e Academia democratica nao
e Academia nem coisa alguma. O simples fa-
cto de ser uma selec9ao faz della uma aristo-
cracia. Portanto, ou seja aristocratica, ou nao
exista. O engragado € que, ao mesmo tempo
que simplificavam a escripta, complicavam o
fardamento. Atiravam pela janella o diccio-
A ACADBMIA SM SKSSlO 59
nario etymologico e mandavam buscar espa-
dins e chapeos armados ...
£ sao taes homens que pensam em fazer
um DicciONARio. Fagamos votos para que
semelhante diccionario nunca venha a luz .
Fique quieta a Academia. Nada de estroinices,
nada de brincadeiras inconvenientes com a
lingua materna, que e uma coisa s^ria .
n^
A morte da peccadora
I
Aquella senhora em quern o maiido, te-
nente do Exercito, disparou algUns tifds de
rev6lver, morreu hontem na Santa Casa, de-
pois de, segundo dizem os jornaes, ter-se re-
conciliado com o seu Deus. O que ha de in-
teressante na sua morte e que a infeliz, con-
forme o depoimento dos matutinos, «expirou
tranquillamenteB. Quern sabe se exaggeraste,
6 divino Flaubert, quando fizeste Emma Bo-
vary morrer naquella agonia estertorante, sob
a influencia do arsenico, e cheia de remorsos,
e tendo visoes dantescas, e apavorada, como
si jd soffresse em vida os supplicios infernaes ?
Quem sabe si a razao nao estava ao lado de
Alphonse de Lamartine, que achou exagge-
rado o castigo que impuzeste a Emma Bovary,
cujo crime afinal se reduzia a tao pouco ?. . .
Como a sociedade ainda e incomprehensivel !
Nao ha homem nenhum que tenha a coragem
62 VB&DA.DSS INDISCRBTAS
de condemnar esse official. Pois que! Ella
teve a prova de que a esposa o atrai9oava I
Mais ainda : ella propria confessou o seu pec-
cado ! Em casos taes — dil-o o Codigo e a So-
ciedade o applaude — fica ao marido o direito
de castigar a esposa para lavar a sua honra !
Valha-nos Deus! A honra, si e que ella en-
tra realmente nessas coisas, ficaria perfeita-
mente salvaguardada com o repudio, puro e
simples, da adultera. Esta solugao tambem jd
6 acceita pela Sociedade e tem a vantagem
de ser muito menos incommoda do que q
assassinate da esposa leviana . Passados al^
guns mezes, o marido se teria esquecido jd da
tragedia, ou pelo menos a lembranga della es-
taria amortecida no seu espirito. Nao ha como
o tempo para apagar maguas de amor. Te-
nhamos confian9a no tempo que, nestas como
em outras circumstancias, e o unico remedio
infallivel. Nao tenhamos illusoes: o assassi-
nato da esposa adultera e mais um desconsolo
que vem attingir o marido. Entao, sendo este
militar, tem mil modos de remediar a situa-
gao, salvando a sua dignidade, sem ter neces-
sidade de appellar para as armas . Uma com-
missao nas fronteiras, por exemplo. As obrir
ga96es do servi90 militar, que, «sob o chicote
das fronteirasv, sao muito mais graves, con-
stituem derivativo, cuido eu, de primeira or-
A MORTB DA FKCCADORA 63
dem para fazer olvidar as infidelidades de uma
mulher. Depois ha o estudo. Creio que era
Chateaubriand que dizia nao haver d6r, por
mais violenta, que resistisse a um quarto de
hora de leitura. E' uma profunda verdade.
Entretanto . . . Entretanto, apezar de to-
dos conhecermos estas coisas, nao podemos
deixar de dar razao ao marido que mata a in-
fiel por esse simples facto a que Napoleao
chamava affaire de canape, affaire de coin de
salon / . . . Porque serd que, sendo nos tao ci-
vilisados, damos razao ao marido que mata
em taes casos ? E' que a civilisagao nossa ain-
da € uma crosta muito superficial. Chegado o
momento de applicar estes principios, parece
dar-se na nossa intelligencia um eclypse de
todas as ideas que a civilisagao pouco a pouco
impoz a nossa incoercivel selvageria interior ;
parece que, em momentos taes, reb6am no
nosso cora9ao todos os gemidos da floresta
primitiva e estrugem gritos de todas as feras
com que conviveram os nossos ancestraes;
e tudo isso, como uma grande caudal esca-
choante, corre por declives ignorados do nos-
so ser ; e entao as Leis, os Codigos, a Caval-
laria, a gentileza, tudo desapparece no vortice
tremendo, innundado pelo diluvio interior de
barbaria mysteriosamente desencadeado pelo
simples olhar de uma mulher voluvel . . .
Q pdraidoxo dat f^i
Uma actrizita ia representar quando o
pae a raptou a porta do theatro. O caso, yi.
amplamente divulgado, interessaria, si nao
fosse vulgar. Porque afinal, depois de tudo,
verificou se que a raptada ja era casada, divor-
ciada, com 26 annos e dois filhos. Uma sem-
saboria, como se ve , . .
O mais interessante e a nossa organisa-
^ao social. Um pae, ao saber que a filha vae
entrar para o theatro, temendo que ella se
perca no meio das suas semelhantes, refeGlve
raptal-a e leval-^a para casa. A filha gftta <|ue
ainda ha juizes em Berlim e com effeito appa-
rece por entre aquillo tudo um sujeito de
oculos que diz ao pae :
— O Sr. nao pode impedir a sua filha
de viver nas caixas de theatro.
— Mas, senhor homem da lei, as caixas
de theatro sao conventilhos !
66 VKRDADES INDISCRKTAS
— Mas sao permittidos por nos. Neste
mundo s6 6 immoral aquillo que n6s prohibi-
mos. Ora n6s permittimos que haja caixas de
theatres. Logo, sao perfeitamente familiares-
Demais sua filha tern 26 annos e dois filhos.
Portanto. ..
— Mais uma razao, senhor juiz, para que
eu nao a queira numa caixa de theatro. E^
preferivel que uma virgem entre nesses meios.
antes que uma mae ; porque a virgem e s6 ;
a mae tem os filhos. Declaro-lhe, pois, Sr.
Juiz, que nao quero ver perdida a mae dos
meus netos.
— Pois eu Ihe declare que permitto ^
mae de seus netos perder-se quantas vezes
quizer, retruca o homem da lei, concertando os
oculos. E si o senhor resistir, tenho a men
lado a forga . . .
Nao e deliciosa essa organisagao social
que prohibe uma menor de disp6r do que e
muito seu, e Ihe da licen^a para fazer o que
entender no dia em que ella f6r mae, isto 6>
quando ella merece maiores cuidados ?
O quinto mandamenta
O que faz suppor que no Rio se assassina
demais 6 a. importancia que osjornaes dispen-
sam is noticias de assassinatos. No Rio nao
se mata demasiadamente. Mata-se o que i
possivel. E nao se mata mais, porque nao se
deseja. O Rio e cidade santa. A protec9ao
que Deus nos dispensa e escandalosa. Temos
uma Saude Publica, que pouco se incommoda
com a hygiene, e, apezar disso, vamos viven-
do mais ou menos livres de epidemias. Pro-
tecgao divina . . . Com o policiamento dd-se o
mesmo. Guardas-civis — escassos ; soldados —
poucos e mal distribuidos. Pois apezar disso
vamos vivendo como Deus e servido. Li uma
vez por outra o Dente de Ouro da uma facada
no Canella Secca^ mas isso nao tem importan-
cia. E' para distrahir um pouco os leitores dos
jornaes. De quando em vez tambem o Ca-
nhoto combina com o Mao de Gato um assalto
68 VERDADES INDISCRETAS
a uma joalheria ou a umacasa de familia. Rou-
bam algumas joias e roupas servidas e safam-
se docemente. Que tern isso ? Nada. Peque-
nos prejuizos, em comparagao do muito que
OS criminosos podiam fazer no Rio si o qui-
zessem. Si nao fossemos gente de b6a indole,
ja nao morava ninguem nesta cidade. E que-
rem a provade que somos gente b6a? Basta con-
siderar o quanto nos impressionamos ainda por
ter um valente qualquer baleado um compa-
nheiro na Gambda; e tanto nos impressiona-
mos que OS jornaes abrem columnas com esse
facto minimo. Si o publico nao ligasse impor-
tancia a isso, os jornaes nao o explorariam .
E' claro. E dessa importancia que os jornaes
dao aos assassinatos e que parece nascer a
convicgao, em que estao muitos, de que no
Rio se mata demasiadamente. E' engano.
Ainda nao se mata o que se devia matar em
relagao a falta de instrucgao e de policia. Fu-
turamente, tenhamos fe em Deus, havemos
de matar muito mais. . .
O 14 de tlulho
Si Mirabeau podesse resuscitar, tomar o
trem ate o Havre, ou Bolonha, ou Bordeos,
e, num desses portos, entrar num paquete, vir
ao Rio, descer ali no caes, simplesmente, mo-
dernamente, como fez Anatole France, eu s6
desejava uma coisa: que com elle viesse tam-
bem Augusto Comte.
Num dia 14 de julho como este, um gru-
po de patriotas foi a Bastilha, velha prisao
de Estado naquelle dia defendida por um
punhado de soldados mais ou menos somno-
lentos. Esse grupo tomou a cidadellasem gran-
de esfor^o, soltou os presos (crimes commuos)
que, segundo parece, nao chegavam a dez.
Ficou assim fundadaa Fraternidade. Fundada
a Fraternidade, parece houve muita genteque
nao concordou com ella. Os homens da Revo-
lugao.para garantirem a estabilidade dos senti-
mentos fraternaes no Universo em geral e na
70 VKRDADBS INDISCRETAS
Fran9a em particular, montaram por isso uma
guilhotina e declararam: «Quem nao f6r frater-
nal mire-se neste espelho ! » Si nao mentem as
chronicas, muitos milhares de homens e mu-
Iheres nao foram fraternaes, porque a guilho-
tina funccionou diariamente em toda a Franga,
durante muito muito. Ora bem — um dos
maiores impecilhos que encontrava a Frater-
nidade eram os padres. Os padres eram frater-
naes ; mas a sua fraternidade era diiferente da
dos revolucionarios. Por exemplo ; os revolu-
cionarios, por causa da sua fe, degollavam; os
padres, por causa da sua f^, queimavam. Di-
vergencia de systema somente ; mas em mui-
tos casos € impossivel distinguir o systema do
fundo da questao. Naquelles tempos essas e
outras coisas se confundiam. Os 61hos da Re-
volu9ao, pois, degoUaram padres, frades e
freiras; e decretaram que nao havia mais Deus.
Dixit insipiens in corde suo : Non est Deus /
S6 existia a Razdo, Mas era precis© symboli-
sar materialmente a deusa Razdo. Como? Pe-
garam de uma rapariga, tiraram-lhe a roupa e
a collocaram, dizem que nua, no altar-m6r de
Notre Dame. Nunca a razao humana foi tao
bem representada. Uma mulher nua e a razdo
pratica em todo o seu esplendor . . . Ora, pas-
sam-se cento e poucos annos. Si Mirabeau
viesse ao Rio, podia ler nos jornaes que os
O 14 DK JUI.HO 71
seus patricios domiciliade^ no Rio mandaram
celebrar hoje uma missa por alma dos france-
zes mortos na guerra. O' manes de Demou-
lins, de Robespierre, de Marat, de Danton !
Quem venceu ? V6s, ou as freiras do Carmelo
que mandastes degollar? E Comte ? Comte iria
^almamente ali ao tempio da rua Benjamin
Constant e diria ao sr. Teixeira Mendes :
«Desce desse pulpito, filho. Cada vez menos
OS vivos sao governados pelos mortos. O ho-
anem se agita e a Egreja o conduz ...»
Quelque chose de vierge
Dizem que o maestro Messager fez, em
palestra, referencias pouco amaveisao Brasil.
Nesse caso, sejamos nos amaveis para com
elle. E' simples, civilisado, parisiense. Parece
que o que mais aborreceu aos jornalistasfoia
facto de Messager, falando-lhe Isadora Dun-
can das nossas aflorestas virgensu, terrespon-
dido: Oh! ouif il faut bien qu on trouve ici
quelque chose de vierge! Messager pareceu du-
vidar de que pudesse haver aqui quelque chose
de vierge. Dahi, asreclamayoesdos confrades.
Pensando bem, nao ha razao para zangas^
Neste mundo tudo se explica naturalmente .
Messager vein de Paris,via Buenos- Ayres. Ora
em Paris, sabe-o toda a gente> e muito difficil
e, por isso mesmo, muito raro encontrar quel-
que chose de vierge — o que tambem se ex-
plica, sem ser preciso recorrer a altos syste-
mas de metaphysica . . . Um homem que vi-^
74 VSRDADBS INDISCRBTAS
veu sempre dentro da grande civilisagao de
Paris estd tao pouco habituado a qualquer coi-
sa virgem, vegetal ou nao, que, em chegando
aos tropicos, duvida de que exista semelhante
fragilidade mesmo nas florestas... Em Fran9a
existe uma floresta, que se chama Fontaine-
bleau. Dizem que e bella. Mas ja esta percor-
rida, explorada, devassada em todos os senti-
dos, de deante para traz e de traz para deante...
Assim e tudo em Paris. Nao ha quadro, morto
ou vivo, que nao tenha sido exhibido; nao ha
livro, diirino ou humano, que ji nao tenha sido
aberto e folheado em todos os sentidos, pelo
direito e pelo avesso; nao ha industria que
nao seja conhecida; nao ha bainha que nao
leve espada; nao ha petit capital que nao
tenha sido ou nao esteja sendo explorado em
grosso ou a varejo; nao ha medalha que nao
seja conhecidissima, quer no verso quer no
reverso . . . Em Paris € assim . Porque exigir
agora que Messager admitta, sem mais exame,
que exista aqui quelque chose de vierge? Pois
si elle nao conhece 'chorographia nem flora
brasileira! . . . Francamente e exigir muito
do intellecto de um cavalheiro que afinal s6
€studou musica. . .
Amizade criminosa
Haveri quern condemne a Roberto Leite
da Silva, o roubador dos autos no Supremo
Tribunal; haverd quern o condemne, o que
nao me admira, pois por muito menos do
que isso foi crucificado Jesus Christo. Entre-
tanto, e preciso dizer que Roberto e um typo
raro. Amizade assim, tao intima, tao ardente
e dedicada, 6 amizade grega. Traz-nos a men-
te vagas reminiscencias de Pylades e Orestes,
de Pythias e Damon . . . Bem sei que os jui-
zes julgam secundum allegata et probata; e €
justamente por isso que um juiz me causa tan-
to medo como uma fera; porque a fera me
ataca, levada pela cegueira do seu instincto
carnivoro; o juiz me condemna, levado pela
cegueira do seu instincto juridico. E' um ani-
mal perigoso. Embora as diligencias poli-
ciaes tenham provado i, saciedade que Rober-
to s6 tentou roubar os autos para inutilisal-os
e, por esse meio, livrar um amigo da prisao
76 VERDADES INDISCRETAS
em que se acha, os juizes com certeza hao de
querer condemnal-o. Pois que! Entao seri
possivel absolver um individuo que tentou
burlar pelo roubo a ac^ao da Justiga Publica,
orgao autorisado e legitime da Sociedade ?
Mas, senhores, o homem agiu por amizade: o
movel desse delicto foi tudo quanto ha de
mais nobre e humane. Que e que constitue a
trama psychologica do crime? A inten9ao cri-
minosa. Ora, a dedicagao ao amigo, que foi
o movel deste delicto, nao 6 intengao crimi-
nosa, pelo contrario, e virtude spartana. Nada
disso vale perante o juiz, porque o Codigo
nao cogita da amizade como attenuante . De
amicitia non curat praetor. De maneira que,
si Roberto tiver a felicidade de ser julgado
por juizes que tenham o senso da equidade\
talvez nao o condemnem a fortes penas; mas,
si tiver a desventura de cair nas garras de jui*
zesque sejam integros e rectilineos cultores
da Justiga (isto e, do Codigo), esta perdido .
Entretanto, ser amigo do Mai e muito mais
difficil do que ser amigo do Bem. Ter solida-
riedade com o amigo na pratica da virtude e
facil e commodo; p6de at^ levar a um nicho;
mas ter solidariedade com o amigo na pratica
do crime, isso, sim, e que e heroico, porque
representa sacrtficio immediate, pelo menos^
da liberdade.
As criangas
Nao fui a Festa da Crian^a. Leio.porem,
nos jornaes que essa festa excedeu a todas as
espectativas. Bemdigamos, pois, os coragoes
dos que, durante algumas horas, conseguiram
fazer feliz a creanga. Mas, deuses do Olym-
po, porque martyrisar a petizada com dois
discursos, como fizeram nessa tremenda festa?
Dois discursos e nao sei quantos hymnos ! A
criangas, no dia da sua festa, nao se falla . Si
se organisa uma festa de criangas, fagam-nas
brincar a vontade, deem-Ihes musica, cinema,
carrossel e doces em quantidade. Si quizerem
ser praticos, ao mesmo tempo que derem do-
ces e balas as criangas, abram creditos nas
pharmacias e nos consultorios para os paes que
forem pobres . . . Mas, pelo amor de Deus,
nada de discursos. Tambem ja fui creanga e
detestava os discursos que me fallavam da Pa-
tria e de outras coisas desagradaveis. A Pri-
78 VBRDADBS INDISCRBTAS
mavera e uma figura de rhetorica muito inte-
ressante; mas num discurso, quando somos
crian^as, a Primavera e peor do que o Verao .
Efazer as criangas cantar hymnos patrioticos !
Ha muita gente que dd uma importancia su-
persticiosa aos hymnos como inspiradores de
patriotismo. E' um engano. O Francez nao
tem patriotismo por vir cantando a Marse-
Iheza desde a infancia, nao; pelo contrario,
elle canta a Marselheza^^otc^^ € patriota.
Quando eu era menino, cantei na escola mui-
tas vezes um hymno ignominioso que co"
mega:
Seja um pallio de luz desdobrado
Sob a vasta amplidao destes c^os . . .
Pois ate hoje nao consegui estimarseme-
Ihante cantoria. Em resumo : reunir criangas
num theatro para fazel-as ouvir oradores e
cantar hymnos patrioticos e martyrisal-as .
Festas de criangas devem realisar-se em par-
ques ejardins, com toda aliberdadede acgao
e grande quantidade de confeitos. A crianga
estima acima de tudo estas duas coisas deli-
ciosas : liberdade e assucar . . .
A tortura do perfume
«Porque nao escreves contra o aperto de
mao aos conhecidos? Com este calor, e hor-
rivel. Macs suadas, algumas viscosas ...» Di-
ziam-me hontem estas coisas. De facto aper-
tar macs suadas e um supplicio, mas . . . Ha
no aperto de mao uma tortura muito mais viva
do que a de apertar maos humidas de suor : e
a tortura da recordagao pelo perfume. Suc-
cede frequentemente apertarmos a mao a uma
mulher (pouco importa que seja casada, ou
solteira), de quern nao podemos, ou nao deve-
mos nos lembrar. Voltamos para a casa, ou
para a redac9ao ; assentamo-nos a nossa mesa
de trabalho ; come^amos a escrever, mas nao
conseguimos ligar ideas. Ha em nos qualquer
coisa, indefinivel e mysteriosa, que nos desvia
o espirito para incertos rumos. O desabrochar
de uma id^a e logo perturbado por esse quid
secreto. Accendemos o charuto, chegamos 4
80 VERDADES INDISCRETAS
janella, olhamos a paizagem. O effeito e ma-
gico: as ideas, esclarecendo-se, come^am a
brotar de novo com espontaneidade, viveza.
Voltamos a mesa, tomamos da penna, come-
^amos a escrever e . . . o primitivo phenome-
no repete-se : as ideas fogem docemente mas
fogem de vez, desapparecem. Entao nos nos
voltamos para dentro de nos mesmos e come-
gamos a fazer o exame de consciencia. «Por-
que nao possotrabalhar?» Mas o proprio exa-
me e perturbado ; ate que afinal descobrimos
instantaneamente a causa da perturbagao : e
o perfume extranho que a nossa mao traz em
si, perfume que nao sabemos de onde nos
veio . . . Ah ! sim ! vem daquella senhora cuja
mao apertamos na Avenida. Em casos taes o
recurso e simples : lavar as maos. E' o que
fazemos e voltamos para a nossa mesa, certos
de poder emfim trabalhar. Engano : o perfu-
me foi-se ; mas a lembran9a da mulher foi
despertada . . . E a lembranga de uma mulher
4 mais subtil do que qualquer perfume da
Arabia. Pica dentro de nos, transformada ja
^m Idea. Antes era o perfume que a fazia
lembrada ; agora e ella que se assemelha a
11 m perfume, a aquelles fortes perfumes para
05 quaes, dizia Baudelaire, todo corpo e po-
roso .
A TORTURA DO PBRFUMB 81
II est de forts parfums pour qui toute mati^re
Kst poreuse. On dirait qu'ils p^netrent le verre...
Assim, certas mulheres : a sua recorda-
^ao nos e transmittida pelo perfume ; e depois
se transforma, ella propria, em perfume sub-
tilissimo, que penetra no nosso ser como cer-
tas essencias que se innoculam ate no crys-
tal .. .
Escandalo !
Certo cinema estd annunciando uma fita
em que uma mulher «nao teme desnudar-se,
alheia a fascina9ao que produz a carne ...»
Nao me admira. Foi Eva (dentre as mulheres
cujos nomes a historia conservou) que
inaugurou esse systema. Muita gente poderd
ficar escandalisada por haver uma senhora
«que nao teme desnudar-se, alheia d fascina-
9ao, etc ... » Eu, nao. Tudo depende da for-
magao da consciencia della. Santa Maria Egy-
pciaca fez mais do que desnudar-se : entregou
o seu corpo a uns marinheiros . . . sem pec-
car. E' verdade que isto e muito difficil . E
Anatole France, na Rotisserie de la Reine
P^DAUQUE, tern a este respeito uma pagina
deHciosa. O padre Jeronymo Coignard conta
aos amigos da Rotisserie este episodio da
vida da santa e explica como, gragas a pureza
de suas intengoes, tinha feito sem peccar o
84 VERDADKS INDISCRSTAS
que outras nao conseguem realisar sem arris-
car a alma . . . Entao a mae de Jacques Tour-
nebroche, une sainte et sage femme, exclama
pouco mais ou menos : « Ah ! eu nao me atre-
veria a isso ! Sem peccar ! E' precise ser mui-
to santa parachegar a tal perfeigao!)) Tudo,
pois, depende da formagao da consciencia,
que e coisa singularmente elastica. Entre os
romances de Voltaire ha um que e a histo-
ria de Cosi Sancta, uma austera e formosa
creatura que commetteu conscientemente tres
adulterios que valeram por actos heroicos de
virtude, e justamente por isso foi ella canoni-
sada ! Bem entendido, factos assim sao exce-
pgoes. Digo isto, precavidamente, porque,
apezar de nao haver ainda no calendario nem
uma santa brasileira, temo que alguma das
minhas patricias queira obter agraga de Deus
nas condigoes de Santa Maria Egypciaca, ou
ser canonisada pelos mesmos motivos que va-
leram uma aureola e um nicho a Cosi Sancta...
Destemperos de Linguagem
Ja se tern dito muitas vezes que a nossa
imprensa, no que toca aos habitos adoptados
entre gente limpa, regrediu. Os jornaes anti-
gos nao usavam da virulencia adoptada hoje.
Nao posso dar testemunho disso, porque nao
fui leitor dos jornaes antigos. Mas nao havera
uma razao que explique esse phenomeno de
regressao da nossa imprensa? Parece que
ainda e preciso recorrer a lei de Taine : o
meio. . . A imprensa nao e mentora, mas
simples reflexo da opiniao. DiziaEmilio de Gi-
rardin que um jornal e feito muito mais pelos
seus leitores do que pelos sens redactores. E'
perfeitamente exacto. Os jornaes nao pro-
curam crear correntes de opiniao, mas apenas
adivinhar para que lado ira o publico, afim de
adherir . . . E como o publico, no maior volu-
me da sua massa, ainda e grosseiro, os jor-
naes serao fatalmente grosseiros, para pode-
86 VERDADES INDISCRBTAS
rem agradar e ter saida ... Os jornalistas
francezes, por exemplo, raramente alteiam a
voz. Porque? Porque o nivel mental e social
dos seus leitores nao exige brados para poder
comprehender razoes ; basta por isso que os
jornaes indiquem, ds vezes numa simples sug-
gestao, o que Ihes parece mais acceitavel .
Aqui s6 e ouvido quem grita. Estamos numa
terra de surdos intellectuaes . . . E a pro-
posito de destempero de palavras, li no
Journal um caso elucidative. Foi chamada
a juizo, em Paris, uma mulher do povo que,
brigando com uma sua visinha, de janella para
janella, disse, no auge da colera, esta phrase :
Si ton mari est creve sur le fronts cest bien
fait! A offendida queixou-se d policia. Tes-
temunhas affirmam que a rapariga proferira a
phrase . Ora o marido da injuriada morreu ha
alguns mezes na guerra. Em vista disso, o
juiz condemnou a accusada por intemperance
de langage a seis dias de prisao e a pagar cem
francos a offendida por damno moral ; e o
Journal approva muito a energia do juiz, que
nao deixou ficar sem vinganga a viuva d!un
brave mort pour la France, bravo aliis
obscurissimo e humilde. Este facto dd id^a do
que se exige na Franga, quanto a medida que
se deve observar no jogo das palavras, mesmo
quando se injuria . . .
O nu symboUco. ..
Chamava-se Serafim Dias e era um sym-
bolo nacional. Tendo bebido mais do que
Ihe permittiria a Escola de Salerno, ou ain-
da a Universidade de Coimbra, foi Serafim
ao largo do Rocio, saltou o gradil da es-
tatua de Pedro I, o Libertador, grimpou como
um simio pelos indios e pilastras acima e attin-
giu o cavallo. Era, entretanto, pouco para o
civismo de Serafim. Um cidadao, quando
chega a tal estado de enthusiasmo patriotlco,
carece de mais. Serafim, nao contente de ca-
valgar o cavallo, entendeu que convinha aman-
sar o cavalleiro ; e la se foi pelo imperador a
riba ate o capacete, onde se assentou tao com-
modamente como um prelado na sua cadeira
prelaticia. Essa quieta9ao, por^m, durou pou-
co. Si grande era o desejo de descansar do
esforgo da subida, maior era o endiusiasmo
de Serafim, que se levantou e ficou de p^ so-
88 VBRDADES INDISCRETAS
bre o imperial chapeo armado, isto depois de
arrancar toda a roupa que trazia (e que nao
era muita), a ponto de poder, si soubesse la-
tim bradar como Job : Nudus egressus sum e
ventre matris me<B ! Mas em vez desta ti-
rada biblica, Serafim, de pe, sobre a cabega
do Libertador, bradou aos quatro ventos da
praga: «Sempre fui monarchista e admirador
de Dom Pedro I, que deu liberdade a esta
terra !» Ca em baixo, o povileo, numeroso e
compacto a ponto de interromper o transito,
apoiava e ria-se . O nosso povo, sempre que
se trata de applaudir discursos patrioticos, tem
o singular costume de sublinhar cada apoiado
com uma gargalhada. Mas o enthusiasmo de
Serafim ainda nao estava satisfeito. Do Capi-
tolio a Rocha Tarpeia, segundo ja proclamava
ha quarenta annos, no largo de S. Francisco,
o sr. Lopes Trovao, vae apenas um salto. A
mesma distancia provou hontem Serafim que
vae do capacete do Libertador ate o exemplar
da Constituigao que elle offerece aos povos
agradecidos. De um salto elle conseguiu ape-
gar-s« a Carta ; e ali mesmo, sustentado pelo
brago armipotente de Pedro I, executou
varias manobras de malabarista, dando
cambalhotas, ficando preso ora por um bra9o,
ora por uma perna, dando gyros successivos e,
uma vez que estava nii, fazendo pensar no
O N^ SYMBOI^ICO. . . 89
Sino phantasma do sr. Augusto de Lima, o
qual termina: a A badalar! A badalar!. . .»
Ate que depois de uma hora desses exercicios
gymriasticos, chegaram osbombeiros e encer-
raram a sessao, fazendo Serafim descer e le-
vando opara a delegacia. Symbolo magnifico,
o Serafim ! Os nossos patriotas, sempre que
querem mostrar aos povos o seu patriotismo,
dao cambalhotas e fazem malabarismos na
Constituigao da Republica, exactamente como
Serafim, por excesso de monarchismo e vi-
nho, fez piruetas clounescas no bra9o do Im-
perador. . .
Amor e Poesia
Jel se tern escripto que o amor e a poesia
vao morrendo no Brasil. E' natural que, mor-
rendo o amor, tambem morra a poesia, que 6
quasi sempre inspirada por aquelle. Emquan-
to, porem, se annuncia a morte da poesia, sur-
gem diariamente por to do este paiz centenas
de livros de versos. Verdade e que, desses
livros, raros se aproveitam ; e, desses raros,
poucas composi96es se salvam. Em todo o
caso, posto que a maioria dos livros de versos
sirva apenas para fabricar bombas, nao se pode
negar que elles representem pelo menos uma
intengao clara e positiva de cultivar a poesia.
De maneira que esta arte, emquanto vae sendo
dada como agonisante, prospera, quando mais
nao seja, para dar lucro aos impressores, pois
6 sabido que a quasi unanimidade dos livros
de versos imprime-se d custa dos autores . . .
E o amor estd morto ? Alguns dizem que elle
92 VBRDADES INDISCRETAS
SO existe actualmente, verdadeiro e sincere,
entre as classes menos cultas da sociedade,
ainda nao eivadas de scepticismo. Ora os fa-
ctos vao provando o contrario. Ainda ha pou-
cos dias, em S. Paulo, um jornalista e poeta,
um intellectual, atirou na amante e suicidou-se
em seguida. . . por paixao. E' verdade que
entre as classes cultas o amor e menos explo-
sivo que entre as pessoas humildes. Estas ma-
tam-se ainda frequentemente por ciume. E a
este respeito notemos como e curiosa a nossa
concepgao do amor ; julga-se que o amor e
tanto mais forte e sincero quanto mais louco
torna o apaixonado. Si este, ao saber que
a amante o trahiu, nao commeteu um desa-
tino qualquer, logo pensam todos que elle
nao a amava mais. Si, ao averiguar a trahi-
gao da amante, o trahido matou-a, ah ! entao,
sim : tinha-lhe grande amor ! E o mais in-
teressante e que as mulheres adoptam esta
theoria, que ate ja passou para a arte e para
a anecdota. Na Sapho, de Daudet, quando
Jean Goussin da a bofetada em Fanny, ella se
sente encantada e exclama : «Como tu me
amas ainda, Joao ! » E e conhecida tambem a
historia daquella portugueza, que tinha grande
paixao por um brutamontes que Ihe escovava
o pello com certa frequencia. Succedeu que
o homem por motivos ignorados. resolveu
AMOR E POKSIA 93
nao bater mais na rapariga ; ella, depois de
passar varies dias sem levar sovas, poz-se um
dia a chorar. E a uma amiga que Ihe pergun-
tou pelo motive de tantas lagrimas, res-
pondeu :
— E* que o meu homem ja me nao
ama!
— Ah disse-t'o ? abandonou-te ?
— Nao ! Mas ja me nao bate !
O mal existe?
O revmo. padre dr. Joao Gualberto da
Amaral fez uma conferencia sobre a Ori-
gem do Mal, de que li o resumo nos^^
matutinos. A existencia do mal no Universe
e as conclusoes pessimistas que dahi se p6-
dem tirar t^m sido objecto de tantos estudos,
discussoes, meditagoes, classificagoes, affirma-
96es e negagoes, que devemos consideral-a
um dos mais serios problemas da Vida . Para
Leibnitz e . . . Plangloss, estamos no melhor
dos mundos. Para Schopenhauer e Hartmaniv
estamos no peor de todos. Para os philoso-
phos catholicos, como S. Thomaz, estamos na
mundo que nos convem, porque foi Deus que
dispoz que aqur estivessemos ; ora Deus e sa-
bio ; logo dispondo que estivessemos neste
planeta, acertou, como sempre... O syllogis-
mo, perante as leis da Logica, esta certb ; res-^
ta, porem, demonstrar-lhe as premissas ...
^6 VERDADBS INDISCRETA.S
Os philosophos, nao tendo certeza, pa-
rece, da existencia do mal, dividiram-no em
varias categorias : o mal physico, o mal
moral e o mal metaphysico.
A meu ver, para os philosophos sadios
e felizes, o mal, si existe, e sempre meta-
physico. O mal physico e o mal moral so
existem para os pobres que soffrem nos
hospitaes ; para os que soffrem nas prisoes e
penitenciarias ; para os que padeem os
horrores da guerra; para os que definham
em penas de amor . . . Charles Richet, citado
pelo dr. Joao Gualberto, nao podendo ne-
^ar que a Dor exista, descobriu-lhe a fina-
lidade : e a sentinella, a defesa da Vida . . .
Ora aqui e que deviamos perguntar: e ou
nao e mau um mundo em que a Vida, que
e um bem para defender-se da Morte, que
e um mal, nao achou outro meio sinao re-
correr a outro mal, que e a Dor? Pergunto
apenas. Nao concluo coisa alguma. Nisto,
como em outras coisas, obede^o ao conselho
de Frederico Amiel : nao tirar conclusoes. . .
Sao Thomaz, que concluia de tudo, conseguiu
°subordinar a consciencia universal is suas
conclusoes ! . . . E Schopenhauer, que tirava
conclusoes pessimistas desde os seus pri-
cneiros trabalhos ; elle, que concluia por exi-
gir o exterminio da Vida pelo ascetismo,
O MAI. EXISTE? 97
ao mesmo tempo que firmava taes theorias,nao
destruia na pratica toda a sua philosophia
com o nascimento de um filho bastardo? . . .
Por isso digo que 6 perigoso concluir . . . O
que parece certo e a existencia do Mai. Si,
por isso, o mundo e mau, e mais difficil
responder. O pensamento de Metschnikoff,
citado pelo dr. Amaral, e curioso : «Dos tu-
mores malignos nao se p6de deduzir prova
importante em favor da concepgao pessimis-
ta do Universo.)) E' muito interessante, mas
eu quizera conhecer o que pensaria deste
conceito um homem que, sendo sabio
e philosopho, ao mesmo tempo tivesse
pelo corpo meia duzia de tumores ma-
lignos. . .
Bddas e Pezames
— Ha duas situa^oes sociaes capazes de
inspirar terror : a situa9ao de noivo e a de
representante da familia de um defunto, lo-
go depois da missa do setimo dia. Um noi-
vo, so por si, ja 6 uma figura vagamente ri-
dicula, pela maneira por que e pretendente :
solicitando a a mao da noiva» por intermedio
de terceiros; fazendo-lhe uma primeira visita,
toda cheia de timidez e commogao, fiscalisa-
do pelos paes ou pelos irmaos pequenos duran-
te o tempo em que elle estci na sala, no
jardim, ou no alpendre com a promettida. Jun-
te-se a esta carga de ridiculo intimo a sobrecar-
ga das pompas mundanas de um casamento
entre n6s e teremos a medida mais ou me-
nos exacta do constrangimento moral de
um noivo, si elle e homem de sensibilidade .
Eu nao sei realmente como um homem nao
estoura de vexame, quando se mette com a
100 VERDADBS 1NDI3CRETAS
noiva num lando enfeitado de flores de la-
ranjeira e puxado por parelhas de cavalloes
brutaes, de patas pintadas de brancc cheios
de guisos e chocalhos e chiquechiques que
fazem barulho de feira e recordam os pa-
Ihagos que no interior saem a rua annunci-
ando espectaculo no circo equestre . Casos
desses justificam o suicidio, . .
Outra situa9ao desesperadora e a de pessoas
que convidam os amigos para ouvirem missa
de setimo dia por alma dos mortos queridos
Quer aqui no Rio quer no interior, manda a
etiqueta que, depois da missa, todos os con-
vidados se approximem das ^pessoas da fa-
milia)) e as abracem. Come^a, entao, para
cavalheiros e senhoras da familia do defun-
ct©, um supplicio de que nao cogitou a In-
quisi9ao : abrir mecanicamente os bragos,
receber entre elles quem quer que se ap-
proxime, apertar um pouco essa pess6a e
dar-lhe nas costas as tres palmadinhas do es-
tylo, murmurando: «Muito obrigadob) Esta
bem visto que esses abra9os nada signifi-
cam de parte a parte, quanto a sinceridade ;
porque, em consciencia, e impossivel que qui-
nhentas pess6as, sete dias depois da morte
de um cidadao de quem nao sao parentes,
ainda estejam commovidas. . .
De maneira que essa etiqueta inquisi-
BODAS E PEZAMES . . . 101
torial e ridicula so produz um effeito: ajuntar
um tormento physico ao supplicio moral da
familia. Eis porque comprehendi perfeita-
mente a attitude de certa familia de b6a so-
ciedade, que, convidando, ha tempos, as suas
rela9oes para uma missa de setimo dia, de-
clarou rios convites que dispensava o abra90
do costume; bastando que cada um dos as-
sistentes deixasse o seu nome num livro
adrede collocado a porta da Egreja . Eis o
que devia ser geralmente adoptado; uma
vez que o abra90 e apenas a prova de que
F. fez acto de presenga, substitua-se o abra-
90 pela assignatura num livro. Lucra a fami-
lia, que se livra de uma tortura, e lucram os
assistentes, que, depois de assignarem o no-
me no tal Registro de Pezames, podem fu-
gir tranquillamente a massada de uma missa
funebre. . . Podemos ficar certos de uma
coisa : e que, se si invertessem os papeis,
quero dizer, si fossemos nos que estivessemos
na cova, e si o defuncto, que alids nao seria
defuncto, fosse a nossa missa de setimo dia,
faria o mesmo, isto e, assignava o nome na
lista e fugia pela porta da sacristia . . .
Elogios. .
O que mais nos deve atterrar no paiz,
como phenomeno social, e a falta de sinceri-
ridade. Cada um, naclasse a que pertence p6-
de verificar facilmente ate que ponto chega
a falsidade, a dobrez entre n6s. Pelo que se
passa na classe dos escrevedores imagino o
que ira por outras bandas. Quern tiver um
pouco' de perspicacia poderd, pela simples
ieitura dos jornaes, avaliar a quantum de
falsidade entra nos elogios que se tributam
a certos livros. Quando, ao abrirmos pela
manha um jornal, encontramos um artigo
"vastamente elogioso a qualquer livro, antes
de tudo indaguemos: «Que posigao social
tem o autor deste livro? » Veremos que,
em noventa e nove casos sobre cem, o au-
tor e da casa civil da presidencia, (ou parente
de alguem da casa civil); € official de gabinete
de algum ministro; filho de algum senador,
104 VKRDADKS INDISCRETAS
diplomata, ou deputado; genro, irmao, ou
cunhado de algum alto dignitario do Regi-
men que nos felicita. Ou entao sera fatal-
mente mulher. . . Fora desses casos, sao mui-
to elogiados tambem os livros de medicos il-
lustres. Geralmente os medicos escrevem
mal, da mesma sorte que os escriptores
nao sabem curar. Isso, porem, pouco im-
porta. E' livro de medico? Elogia-se, ainda
que o livro seja um tecido de logogryphos e
enigmas pittorescos. Assim se explica que a
Academia de Letras se encha de medicos,
emquanto homens como Farias Britto mor-
rem ignorados. Si o sr. Farias Britto, em vez
de estudar a Logica de Stuart Mill e a Ethica
de Spinoza, tivesse procurado ser apanigua-
do de qualquer ministro, todos os prelos te-
riam gemido cada vez que apparecesse
um livro seu. Com logica e ethica nao se apa-
nham elogios da imprensa, senao com em-
pregos, dinheiro e as vezes com simples pro-
messas e esperangas . . .
Paz aos idolatras
Li num dos nossos matutinos um
artigo firmado por uma senhora (creio que e
pseudonymo), que ataca o culto das imagens,
dizendo ser isso acto de idolatxia. Eis ahi uma
senhora curiosa: 6 contra o culto das ima-
gens por nao querer ser idolatra ! Recusara
tambem essa calvinista ser idolatrada, isto e,
ser alvo da idolatria de alguem?. . . Depen-
de da sua edade. E como nao a conhe90,
nao o posso decidir. . .
O que achei interessante foi a coinci-
dencia : essa senhora ataca o culto das ima-
gens justamente no dia em que vao asforgas
navaes prestar continencia d imagem do al-
mirante Barroso, o vencedor da batalha do
Riachuelo. As nossas pragas estao cheias de
imagens, que recebem culto civil. As nos-
sas casas estao cheias de imagens (retratos)
de entes queridos, que recebem culto domes-
106 VBRDADBS INDISCRETAS
tico. Porque nao admittir nas egrejas ima-
gens que recebam culto religioso ?
Porque isso e acto de idolatria !
Dizem os theologos que nao. No catho-
licismo ninguem adora as imagens ; venera-as
s6mente. Demos, porem, de barato que os
catholicos adorem as imagens, como os pre-
tos adoram 1^ os seus manipangos. Que mal
vae nisso? Nao advem sombra de prejuizo
ao mundo. Realmente nao vejo em que a
especie humana sera prejudicada pelo facto
do meu visinho da direita venerar uma ima-
gem, o da esquerda adoral-a, e eu nem a ado-
rar nem a venerar, mas apenas tolerar e res-
peitar aquelles que a adoram, ou simplesmen-
te a veneram.
Demais, si ha idolatria no culto catholico
das imagens, tern sido uma idolatria benefica,
tal o numero de bellas estatuas, verdadeiros
primores, que tem inspirado essa idolatria
como se pode ver nas velhas cathedraes ita-
lianas e francezas por exemplo. Tenho mui-
to mais sympathia pela idolatria fecunda do
catholicismo do que pela seccura protestan-
te, que se limita a vulgarisar a Biblia . . . Em
resumo — nao vejo mal na idolatria catholica
(si de facto existe), como nao vejo mal nados
selvagens nem na dos gregos oh ! pelo contra-
rio : quem nos dera poder ser idolatras como
OS hellenos ! . . .
A tyrannia democratica
Mudam-se os rotulos aos systemas de
governar os homens, mas esses systemas nao
progridem, pelo menos no Brasil. Na Eu-
ropa, em certos paizes, a civilisa^ao e o cul-
to do direito jd nao permittem a existencia de
tyrannos de certa casta. Na Italia de hoje,
por exemplo, e impossivel a existencia de
Cesar Borgia. Ha leis severas que punem os
assassinos, os envenenadores, os traidores ; e
essas leis sao rigorosamente observadas. Si o
principe herdeiro da Italia fosse accusado
de ter mandado matar um cidadao secreta-
mente, que complica96es isso acarretaria para
o throno ! Si o principe de Galles fosse accu-
sado de qualquer crime provado, nao falta-
riam no Reino Unido juizes que o condem-
nassem. E' que, em paizes como a Italia, a
Franga, a Inglaterra, o direito nao e fic-
^ao, e realidade ; ajustiga nao e abstrac9ao,
108 VERDADES INDISCRETAS
6 valor corrente. Alguns seculos de civilisa-
9ao deram a esses povos perfeita consciencia
dos seus direitos e deveres, dentro da <rcon-
sciencia nacionab) de cada um. E' o que nos
falta: a « consciencia nacional» . So depois
que ella estiver formada e que sera possivel
pensar da fundagao de um regimen politico
qualquer. Temos aqui uma «republica fede-
rativa» ; temos Constituigao, Congresso, mi-
nistros. tribunaes, batalhoes, emfim todo
o apparato exterior dos povos bem or-
ganisados. Apenas essa Constituigao nao
e cumprida ; esses ministros nao t^m respon-
sabilidade ; esse Congresso estd desmorali-
sado; esses tribunaes nao inspiram confianga;
esses batalhoes nao sabem combater; esses
navios nao podem navegar. Toda a machina
politica e administrativa esta emperrada . S6
ha, neste paiz, uma instituigao seria, estavel,
permanente, bem equilibrada e respeitada;
a das olygarchias quer dos grandes quer dos
pequenos Estados. Essas, sim, existem e
funccionam admiravelmente.O filho do olygar-
cha, si Ihe appetecer, pode mandar raspar a
cabega de qualquer cidadao (o que ja se tern
dado) sem o menor receio ; pode, si o quizer,
mandar matar qualquer desaffecto seu ; si os
capangas o denunciarem depois de presos,
ninguem, oh! ninguem o acreditard, e
A TYRANNIA DEMOCRATICA 109
nem havera juiz capaz de apurar a responsa-
bilidade criminal do rapaz, que sera despro-
nunciado, haja o que houver. De sorte que vi-
vemos aqui com pequena differen9a da Eda-
de Media. O que nos distingue da Europa
medieval e, primeiro — um pouco de progres-
so material (luz electrica, bondes, etc.) ; se-
gundo — o nosso immenso atrazo em materia
de coisas do espirito ...
Commentarios ao "Binoculo
f»
O Binoculo tern estado excellente . Eu
o leio sempre, e quizera que tambem o lesse a
sra. Gilka da. Costa Machado. O Binoculo vi2jo
e apenas uma escola de boas maneiras: €
tambem uma escola de timidez e de mansi-
dao. E' a Imitagdo de Christo do mundo ele-
gante. Estes dois dias tern elle estado admi-
ravel nos conselhos que vem dando acerca
do melhor modo de visitar. Diz elle que,
em materia de visitas, a regra geral e esta :
ccNunca nos devemos tornar importunos.»
Dou alguns exemplos : nao puxar a ca-
deia do relogio do nosso hospede ; nao Ihe
torcer os botoes do casaco ; nao Ihe dar mur-
ros quando fallar de box, nem patadas quando
tratar de futebol ; nao o chamar a um canto
da sala para Ihe pedir dinheiro . . .
(cSi virmos o dono da casa tornar-se im-
112 VERDADES INDISCRETAS
paciente, consultar o relogio, nao progredir
na conversa^ao, etc., retiremo-nos Iogo». Per-
feitamente. Nao devemos esperar que o dono
da casa nos aponte um revolver ao ouvido,
nem que a dona da casa mande virar de per-
nas para o ar as cadeiras da sala.
Attengao: « Si formos visitar uma senhora
nova, que viva so, e chegar em seguida um
segundo visitante mais familiar que nos, par
tamos immediatamente.» Isso mesmo, antes
que esse tal segundo visitante mais familiar
nos aponte a porta da rua com a bengala .
O melhor e arranjar as coisas de maneira
que, quando o segundo visitante chegar, o
primeiro ja tenha sahido, sem que o saiba a
visinhan9a. . .
«Nunca se deve entrar sem ter sido an-
nunciado ou ter-se annunciado a si proprio ;
a ac^ao em contrario e enorme impolidez . »
Nao e que haja grande inconveniente em
entrar um cavalheiro, sem se fazer annun-
ciar, para o quarto de Madame ou para o pe-
queno aposento de Mademoiselle. Esta regra
binocular foi feita em beneficio dos proprios
visitantes. Por desconhecerem esta regra,
isto e, por terem entrado em casas alheias
sem se fazerem annuneiar, muitos cavalheiros
tem passado pelo vexame de ser presos e
estao cumprindo senten9a na Correc^ao. Ain-
COMMEKTARIOS AO BINOCULO 113
da ha poucos dias foi umaleva desses senho-
res para a Colonia Correccional. O seu unico
crime foi terem entrado em casas de familia
« de negocio sem dizer quem eram. . .
3
Os bigodes do Exercita
Si o sr. general Gabino Besouro, com-
mandante da 5^ regiao, nao leu, de certo
adivinhou o verso de Moliere: Du coti de
la bar be est la toute-puissance . . . Segundo
publicam OS jornaes, o sr. general comman-
te e contrario a soldado de cara raspada.
A um cabo que Ihe pedio permissao para
escanhoar o bigode, respondeu S. Ex. pela
negativa e, entre outras razoes explicativas,
acrescentou que «uma carasem bigodes, com-
pletamente raspada, nao impressiona como a
que traz o masculo e natural distinctivo mas-
culino.D
Com licenga do general: o soldado, com
a sua barba, deve impression ar o sexo mas-
culino ou o feminino? A ambos, respondera
S. Ex. Nego eu. Para fazer correr um medro-
so tanto vale um barbado como um glabro;
quanto ao corajoso, si nao correr do escanhoa-
116 VERDADES INDISCRETAS
do, tambem nao se deixaraimpressionarpelo
barbado. De sorte que, a dizer verdade, a
barba na infantaria influe pouco no exito dos
combates .
Agora, a questao e mais delicada. Cre o
sr. commandante que impressiona menos a
uma mulher uma cara raspada do que a que
traz «o masculo e natural distinctivo masculi-
no,» como pittorescamente diz S. Ex.? Nao
creia nisso o meu general. Ao tempo em que
S. Ex. eracadete, talvez aindaassim fosse. Um
bom par de bigodes dava sorte perante as
mulheres. Hoje, nao . . . E si o proprio gene-
ral no principio do seu despacho, reconhece
que «o pedido de permissao para raspagem
do bigode e coisa muito frequento), isso bem
mostra que os que pedem tal licenga la terao
suas razoes (talvez pouco militares) para que-
rer escanhoar-se... Convenga-seo general de
que OS tempos de hoje sao differentes dos
seus. Si OS rostos raspados nao agradassem
muito mais ao outro sexo do que os rostos
barbudos, nao haveria no exercito tanto pe-
dido de licenga « para raspagem B, e S. Ex.
nao veria a mor parte dos paizanos raspar
sem piedade os bigodes. E neste caso, como
em tudo o mais, ainda e o sexo feminino que
manda . . Cada vez mais as mulheres gover-
nam os homens. E, com o devido respeito.
OS BIGODKS DO EXERCITO 117
OS proprios soldados sao govern ados muito
mais por ellas do que pelos heroicos bigodes
do ST. general commandante. E' deploravel,
nao ha duvida, mas tambem e irremediavel,
irresistivel . . .
Exigencias do minuete
Leio nos matutinos que brevemente ha-
verd a primeira festa de caridade desta esta-
9ao; e do seu programma faz parte um nume-
TO que, executado comme il faut, sera uma de-
licia: um minuete de Mozart dansado por oito
pares.
Como, entretanto, irao dansar esse mi-
nuete? Por emquanto nao dizem as folhas si
serd dansado a caracter ou em trajes de hoje.
Pergunto-o porque taes extravagan-
cias se dao nesta cidade, que poderiam os
bailarinos apparecer — os cavalheiros de ca-
saca e as damas trajadas segundo o maximo
rigor do Paris moderno — o que seria lamen-
tavel.
O minuete e dansa inadaptavel a qual-
quer epoca differente da sua. Exige do lado
das damas — puffes e cabelleiras empoadas;
do lado dos cavalheiros — sapatos a Luiz XV,
120 VERDADKS INDISCRETAS
casaca de portinholas, calgoes, espadim, bofcs
de renda, tricorne, corpo flexivel e — minucia
importantissima!— perna muito bem toniea-
da...
Dansar o minuete com trajes modernos^
com a mesma casaca sensaborona com que
se dansa o tango no Assyrio ou se vaearece-
p^ao do palacio do governo, e um absurdo
historico e wm attentado contra a esthetica.
A casaca e uma casta de roupa inventa-
da para nivelar, perante as leis da moda, o fi-
dalgo de ra9a ou de espirito e o plebeu, o
burguez e o proletario.
E' traje democratico e sem individuali-
dade. Tanto podera servir para o rei da Ingla-
terra como para qualquer desses condes ita-
lianos e portuguezes, promovidos de engra-
xates e vendedores de cebolas a fidalgos de
linhagem.
Nunca, porem, para o minuete, que e a
dansa mais aristocratica de quantas existem. E'
uma dansa queexige amdzenfepropno,como os
passos hellenos e em geral todas as choreas
que marcaram limite duma civilisagao. Mi-
nuete que nao recordar o pincel de Greuze
ou de Watteau nao e minuete.
Exige tudo isso e mais um entrainement
prolongado, porque n6s nao podemos ter
idea da delicadeza que € necessaria para in-
EXIGENCIAS DO MINUETS 121
terpretal-o. Quern quizer dansar bem um mi-
nuete deve passar pelo menos um mez sem
dar um passo de qualquer das detestaveis
dansas americanas, que tern corrompido o bom
gosto destes tempos. E depois disso, ensaio,
estudo, estudo, ensaio. O minuete e exigente.
Dansal-o como se dansa o tustepe ou o tan-
go canalhesco e uma profana^ao.
Ruido e SoiidSo
O carnaval dos que vagam sos pelas ruas
men OS procuradas, pelas ruas silenciosas,
talvez nao seja o mais aconselhavel, mas nem
por isso deixa de ser o mais divertido. Os
que buscam a agitagao da Avenida cumprem
a sua finalidade. Osfrades, no silencio das suas
cellas, provam que nasceram para o silencio ;
OS carnavalescos, no ruido de Avenida, pro-
vam que nasceram para o ruido . O mundo
nao seria mais triste, si deixassem de exis-
tir frades nos seus conventos ; tambem nao se-
ria mais alegre, si supprimissem o Carnaval .
Os moralistas nao applaudem essas bambocha-
tas e tem razao. Mas o movimento do univer-
so e tao indifferente ao Carnaval como ao tre-
mendo mysterio daRedemp^ao. O globo con-
tinua a gyrar em torno do seu eixo, at6 que
apparega algum sabio que prove o contrario,
sem correr os riscos por que passou Galileu...
124 VKRDADES INDISCRETAS
Justamente agora, emquanto escrevo, meni-
nas de familia, phantasiadas e de meias-mas-
caras, passam cantando coplas que fariam en-
rubescer meretrizes de Byzancio. Ora, antes
dellas passarem cantando as suas obsceni-
dades, pouco antes, approximou-se de mim
uma pobre creanga esqueletica, de dez
annos no maximo, faminta, e pediu-me uma
esmola ; depois percorreu outras me-
sas. Dahi a pouco entrou no bar (rua afas-
tada) um senhor acompanhado de uma
menina. apparentando dez annos, forte,
sadia, vestida de branco e muito seriazinha.
Parecia filha do cavalheiro, que pediu uma
garrafa de cerveja. x^mbos beberam . Elle lia
um jornal. A pequena bebia. Qual seria
mais infeliz — a que, aos dez annos, pedia
esmola, ou a que, aos dez annos, bebia em
companhia do pae ? Mas o Universo e in-
differente a tudo isto. Entretanto, quem se-
ria a mo^a que passou por mim, vestida
de siciliana e com duas trangas castanhas,
maravilhosas, a cairem-lhe quasi ate aos
joelhos ? O' Santuzza desconhecida e errante I
O que eu daria por uma noite atado a essas
fortes trangas de mulher primitiva ! . . .
O pogo maldito
O caso do homem que caiu no poyo em
Rocinha, Estado de S. Paulo, offerece as-
pectos curiosos. Esse infeliz, que se chamava
Isaias, quando alimpava uma cisterna de vin-
te e cinco a trinta metros de profundidade,
caiu la em baixo e esteve quasi uma semana
«morre nao morre», emquanto se faziam
baldadas tentativas para salval-o.
De Sao Paulo foram duas turmas de bom-
beiros, chefiada cada uma por um engenheiro.
De Sao Paulo foram ainda cabos, roldanas e
outros apetrechos necessaries ao trabalho de
i9ar o infeliz que jazia sepultado em vida,
meio devorado pela repugnante e venenosa
bicharia do fundo do pogo, num martyrio for-
midavel, a Edgard Allan Poe. Mais de duzen-
tas pessoas estacionavam a borda do pogo,
ajudando a salval-o, ou lamentando a sorte
de Isaias. O telegrapho, comegou a trans-
126 VERDADES INDISCRBTAS
mittir ao paiz inteiro que la em Rocinha
caira um homem num pogo. Os prelos
gemeram. Os jornaes descreveram o estado
de Isaias, reclamaram providencias, suggeri-
ram medidas. Emfim, o paiz inteiro ficou sa-
bendo que um homem soffria no fundo de
uma cisterna. Pelas esquinas, pelas confeita-
rias, ate nos theatros, nao se cuidava de cutra
coisa : « Isaias, coitado, caiu no pogo e vae mor-
rer». Finalmente, como nao foi possivel sal-
val-o, morreu. Os jornaes abriram columnas,
deram retratos e, la em S. Paulo, ja comegam
a fallar na abertura de um inquerito para apu-
rar si Isaias deixou de ser salvo por impossi-
bilidade material ou si por impericia das tur-
mas encarregadas do servigo.
Quem podera saber si Isaias deixou de ser
salvo por impericia? E' preciso nao perder de
vista o seguinte: durante cerca de cinco dias,os
bombeiros idos de S. Paulo, com grandes dif-
ficuldades, conseguiram ir entretendo a vida
do infeliz a custa de cordeaes, leite, vinho,
aguardente, cafe, etc . , que Ihe davam la
em baixo, presos a cordas e correndo o risco
de se enterrarem tambem. Apos muitos tra-
balos esses bombeiros conseguiram igar o
homem ate talvez metade da altura do pogo.
Foi um momento de jubilo. Estava salvo!
Nao, nao estava. O cabo partiu-se e Isaias
O PO5O MAI^DITO 127
caiu outra vez. Mandaram vir cabos mais for-
tes. Vieram tambem empregados da Compa-
nhia Paulista, que, em algumas horas, conse-
guiram p6r a cisterna a secco e igar Isaias.
Estava finalmente salvo ! De ca de cima ja o
viam apparecer na semi-obscuridade do seu
sepulcro. De repente — paf! — Idse arreben-
tava o cabo e o infeliz imniergia novamente
nas trevas, de onde foi impossivel retiral-o
com vida, pois que, durante o trabalho de seu
terceiro salvamento, elle rendeu o espirito.
Eis porque nao sei ate que ponto se podera
attribuir esse desastre a falta de pericia das
turmas salvadoras. Impossibilidade material
de salval-o nao existia ; e a prova e que, por
duas vezes, esteve quasi salvo ; e si, por
duas vezes, elle esteve quasi salvo, so nao o
sendo por se terem quebrado solidos cabos
em que os profissionaes depositavam confian-
ga, nesse caso, parece nao ter havido imperi-
cia. Eu me inclinaria, antes, a admittir como
explicagao dessa desventura, ate que appare-
9a outra melhor, fatalidade. E' certo que as
autoridades, maxime quando procedem a in-
queritos administrativos em que as suas pes-
s6as nao estejam envolvidas, sao pouco in-
clinadas a admittir a fatalidade como expli-
cagao de uma catastrophe. O que ellas procu-
ram e Mm.2. falta parapunir. Ora a fatalidade
128 VERDADES INDISCRETAS
nao pode ser punida. A impunidade e preci-
samente o seu maior prevjlegio. De sorte que
ella fica quasi sempre afastada das conclus5es
dos inqueritos. Fica afastada, mas nem por
isso deixa de existir e de manifestar-se, como
no caso de Rocinha, em que parecia haver
uma forga occulta e mysteriosa que attrahia o
pobre Isaias para o fun do dantesco do pogo
4TiaIdito . . .
As mulheres na politica
Adiantara muito submetter a politica a
ainfluencia santificadora do sexo affectivo»,
como diria o sr. Teixeira Mendes ? Creio que
nao. De facto, as mulheres ja influem na po-
litica, embora nao sejam eleitoras nem depu-
tadas : influem indirectamente, pelo prestigio
que tem sobre os maridos, sobre os noivos,
sobre os amantes. Nem e preciso a uma mu-
Iher ser casada com deputado para influir nas
suas ideas politicas. Conhego deputados que
sao francophilos por causa das prostitutas fran-
cezas , . . O venerando senador Irineu nao se
dedignou de ir uma noite ao Municipal fazer
discurso numa festa apr6-alliados» que ali se
realisou sob os auspicios da nao menos vene-
ravel Suzanna Castera, proprietaria de uma
pensao de meretrizes . Nem louvo nem con-
demno : admiro com as turbas . . .
4-
130 VERDADES INDISCRETAS
Ora, influindo as mulheres nos politicos^
e sendo estes, em geral, o que nos sabemos,
OS negocios publicos melhorarao muito no dia
em que ellas influirem directamente sobre
elles ? Nao creio. Uma ou outra mulher, des-
de que o mundo existe, tern tido visao poli-
tica : Catharina de Medicis, Maria Thereza,
Catharina II, da Russia, a rainha Christina, da
Hespanha, e algumas outras mais. Sao, po-
rem, excep^oes, alem de serem mulheres de
raga nobre, descendentes de reis, de homens
de pensamento e mando. Agora, que benefi-
cio resultaria para o paiz si, por exemplo, a
professora Leolina Daltro fosse deputada ? Ne-
nhum. Seria apenas a representagao feminina
do marechal Pires Ferreira .
Geralmente se diz que as mulheres sao
mais honradas,em materia de dinheiro, do que
n6s OS homens. Confesso ser verdade. De
ordinario as mulheres nao furtam. Mas nao
furtam porque ? Porque os homens se incum-
bem de furtar para ellas. Entao essas nego-
ciatas, essas chantagens, essas roubalheiras
formidaveis, que se praticam por ahi, serao fei-
tas pelos homens so pelo prazer de ajuntar
dinheiro, muito dinheiro nas gavetas, so pelo
«gosto da cobiga e da avareza», como diria
Luiz Vaz de Camoes ? Nao. Si os homens
prevar^cam, e por causa dos chapeos, dos ves-
AS MDI,HERBS NA POWTICA 131
tidos, das meias e das joias das mulheres. Si
as mulheres, para dar o seu amor, nao exigis-
sem tanta coisa cara, tao prevaricadores nao
seriam os homens. Ora, no dia em que
ellas fossem deputadas e ministras, seriam
tambem brasseuses d'affaires e commetteriam
as mesmas indignidades que os homens. Ape-
nas, sem justificativa : um homem que furta
por amor, isto e, para nao perder as coxas de
uma mulher, esta muito longe de merecer
absolvigao, mas inspira certa sympathia — a
sympathia que se tem pelos imbecis. Uma mu-
lher que furtasse — furtava apenas para si,
para comprar chapeos e joias. Amor? Nao:
simples e pura vaidade. Ha ainda, para con-
sumir o dinheiro dos homens, o jogo. Mas as
mulheres tambem jogam, e jogam feio e forte.
Em Caxambu, nas estagoes proprias, quando
OS hotels regorgitam de aquaticos, a roleta e
frequentada pelas senhoras defamilia.as quaes,
diga-se de passagem, embora um pouco inge-
nuas, tem admiravel vocagao para tripoteuses
e tricheuses. Isto alias, nas mulheres, e muito
antigo. Ja no tempo de Luiz XIV, a duqueza
de la Ferte, jogando com os seus fornecedo-
res, roubava-os. Quando alguem Ihe fallava
nisso, ella respondia: Eh bien, oui,je les tri-
che, mais c est quits me volent . . . Eis porque,
a meu ver, a entrada das mulheres para a po-
132 VBRDADES INDISCRETAS
litica n|Lo melhpraria em nada a situa^ao do
paiz. Ideas ellas nao trariam ; quanto a ho-
nestidade, a dellas nao seria maior do que a
nossa. . .
Verhaeren
A morte de Emilio Verhaeren, tao ino-
pinada e tao tragica, equivale a um cheque
formidavel soffrido pela litteratura mundial.
E' uma grande fdrga espiritual que desappa-
rece. Verhaeren era uma grande forga uni-
versal. P6de-se aferir a grandeza de uma per-
sonalidade pela vibra^aoque a sua morte pro-
duz em todo o mundo. A morte de Verhae-
ren produziu a mesma vibra9ao mundial que
a de qualquer dos grandes soberanos do uni-
verso. Porque desde o momento em que elle
era esmagado por um trem em Ruao, estre-
meciam os fios telegraphicos, transmittindo a
nova a toda a Franga ; vibravam os cabos sub-
marines, espalhando a noticia por todos os
continentes, levando-a aos dois polos da Ter-
ra; vibrava a propria atmosphera nas suas
ondas hertzianas, levando o conhecimento da
morte de Verhaeren a pontes distantes, a
134 VERDADES INDISCRETAS
pontes ignorados, a qualquerplaga desconhe-
cida onde houvesse uma alma sensivel as emo-
goes superiores. Este grande symbolista, este
grande mystico dos Moines, foi tambem um
extraordinario realista, ou melhor, um formi-
davel idealisador da materia. Toda a vida con-
temporanea teve no Verhaeren das Forces
TUMULTUEUSES C daS ViLLES TENTACULAIRES
o seu melhor, o seu unico cantor. Toda a in-
quietagao moderna esta nos versos deste gran-
de flamengo. Nao ha dobra, por mais secreta,
da complexa alma contemporanea, que nao
tenha sido analysada em seus versos, as vezes,
numa simples phrase, mas numa dessas phra-
ses germinativas, que se desdobram, no nosso
interior, em infindaveis ondas sonoras, em
echos incessantes, em rythmos infatigaveis,
ate que se percam no tumulto da vida uni-
versal.
A lingua franceza no seculo XIX teve
dois poetas maximos : na primeira metade,
Charles Baudelaire, analysta da alma deca-
dente do seu tempo ; na segunda metade,
Emile Verhaeren, o reverbero mais poderoso
e mais vivo da alma de transigdo que caracte-
risa a sua epoca : soube comprehender a vida
real como um homem de sciencia ; soube adi-
vinhar o que nao sabia, como um genio, e
soube simultaneamenteser um mystico digno
VERHAKREN 135
<la aureola que illumina o seu patricio Ruys-
broeck, o Admiravel. Tragico Yerhaeren ! O
seu espirito viveu em perenne contemplayao
de todas as forgas que constituem a belleza
interior da Vida ; quiz o destino que a sua
vida se extinguisse num turbilhao, colhidapela
afor^a tumultuosa» de uma locomotiva em
inarchapara asplanicies, para os campos, para
a Natureza e para as cidades tentaculares que
elle idealisou, e ondeaporgao inferior do seu
ser se integrara nas podridoes incessantes de
Celui du rien :
« Je suis celui des pourritures incessantes . . .
Je suis celui des pourritures infinies :
Vice ou vertu, vaillance ou peur, blaspheme ou foi,
Dans mon pays de fiel et d'or, j'en suis la loi,
Et je t'apporte k toi le consolant flambeau^
ly'offre a saisir de ma formidable ironie
Kt mon rire, devant I'universel tombeau. . .»
Sim, o destino foi bestialmente ironico
para com Emilio Verhaeren: em vez de fazel-o
morrer docemente, no mvstico deslumbra-
mento das suas harmonias interiores, deu-lhe
morte violenta e ruidosa. O cantor dos Ry-
THMOS soBERANOS reccbeu como premio a mor-
te sem rythmo ; e, em vez de ouvir, ao morrer,
a musica de si mesmo, elle, o grande rebusca-
dor de rythmos para o pensamento, a ultima
vibragao das f6r9as naturaes que ouviu foi o
136 VERDADES INDISCRETAS
silvo de uma locomotiva, como expressao
symbolica e tragica da aformidavel ironia» das
coisas, do extranho riso cosmico do tumulo
universal que escancarava a fauce para tragal-o
in ceternum et ultra . . .
Heresia orthographica
Eu deveria ter escripto «Erezia ortogra-
fica» para ser agradavel ao sr. Medeiros e Al-
buquerque, cujo artigo — ((Relijiao ortogra-
fica», foi o inspirador destas linhas.
O sr. Medeiros e Albuquerque vem ha
muito tempo pugnando pela simplifica9ao da
nossa orthographia. Uma lingua e um orga-
nismo vivo ; portanto esta sujeita a modifica-
9oes, a augmentos, a diminuigoes, a amplia-
96es e simplificagoes, como qualquer outro
organismo. Mas essas modificagoes nao po-
dem e nao devem ser feitas por decretos. De-
vem operar-se naturalmente, espontaneamen-
te. Antigamente escrevia se gapato e agucar\
hoje escreve-se sapato e assucar, porque o uso
consagrou estas ultimas formulas.
A orthographia e, com effeito, uma con-
vengao ; mas as melhores conven96es nao sao
impostas por decretos nem ucases; sao basea-
138 VERDADES INDISCRETAS
das na tradigao; triumpharam pouco a pouco.
A maior das conven^oes e a moral, que nao
se impoe por intermedio de poderes legislati-
ves. Si outrora alguem se lembrasse de de-
cretar a obrigatoriedade do decote, provavel-
mente teria de soffrer opposigao de todos os
Catoes da epoca; entretanto,o decote e hoje de
uso corrente na alta sociedade, emcertas fes-
tas nocturnas. Si uma senhora, pela manha,
nos apparecer de hombros nus, ficaremos a
pensar coisas absurdas a respeito de sua mo-
ralidade . . . De noite, num theatro, ella pode
mostrar a toda a gente os hombros e grande
parte da espinha, o coUo ate a raiz dos seios,
OS bragos (inclusive as axillas), as pernas ate
osjoelhos, etc., etc., etc., sem incorrer em
suspeita de especie alguma, salvo si ja for
mais ou menos conhecida de todo o mundo a
sua chronica secreta. . . Pura convengao, cer-
tamente, mas que nao se impoz de um dia para
outro.
Assim e a orthographia. Ella deve modi-
ficar-se pela acgao do tempo. Ha palavras que,
modificadas de um momento para outro, per-
dem quasi a sua razao de ser. Que razao ha-
vera para escrevermos, por exemplo, lyriof
Nenhuma. Em latim se escreve lilium ; mas
estamos de tal maneira habituados a ver lyrios
e nao lirzos, que nao valeapena alterar agra-
HERESIA ORTHOGRAPHICA . . . 139
phia do vocabulo, Isto sem appellar para a
razao que dava aquelle academico francez para
que se escrevesse lys e nao lis, isto e, que o y
ja recordava materialmente a forma de um
lyrio. . .
Fantasma sem ph nao causa medo a nin-
guem ; ao passo que phantasma, basta ler-se
para que se vejam logo duendes e gnomos de
todas as qualidades. . .
Onde o sr. Medeiros e Albuquerque tern
razao e no ponto em que combate o motivo
que deu a Commissao de Finangas para nao
mandar adoptar uma orthographia official :
que a questao orthographica e um caso de con-
sciencia, como a religiao ! Isto, realmente, e
uma razao de cabo de esquadra. Nesse andar
nao podiamos legislar mais sobre coisa algu-
ma. Ha, por exemplo, religioes que admittem
o casamento de um homem com muitas mu-
Iheres ; logo, o Codigo penal nao pode punir
a bigamia, porque o bigamo pode ter-se casa-
do com mais de uma mulher por motivos reli-
giosos, alem de outros menos espirituaes . . .
Na verdade seria antipathica qualquer
decisao dos poderes publicos a respeito de
orthographia. A Commissao, pois, fez bem
nao legislando ; mas podia ter dado outra ra-
zao. Podia, por exemplo, appellar para o facto
de haver muitas grammaticas portuguezas au-
140 VERDADES INDISCRETAS
torisadas officiatmente ; ora, trazendo essas
grammaticas regras mais ou menos certas a
respeito de orthographia, cessava a necessi-
dade do governo estabelecer nas reparti96es
publicas principios basicos de escripta. O que
o governo deve procurar regularisar quanto
antes, com a maxima urgencia, e a escripta
do Thesouro. O resto deve ficar por conta
das grammaticas adoptadas nos institutes offi-
ciaes e que na© sao poucas . . .
Quanto ao sr. Medeiros e Albuquerque,
uma vez que, segundo o seu artigo de hontem,
o Estado adoptou uma (crelijiao ortograficaj),
elle, que e contrario a essa arelijiao», fica na
categoria dos «erejes)) ; ou melhor, sen do,
como o e, corypheu de uma ref6rma contraria
a essa «relijiao)), devera ser mais que um sim-
ples hereje : e um heresiarcha, ou ereziarcUy
si Ihe s6a melhor . . .
A princeza Arminda
Em livro muito antigo — Da curiosa his-
toria da fermosa princeza Arminda de Gra-
nada — seria possivel encontrar capitulos
assim :
cc Cap. IV — Como o principe Mustapha
veio cantar sob o balcao de Arminda ao som
do arrabil e do mais que entao se passou.
Cap. X — Como a fermosa princeza, nao
querendo fazer maridan9a com o principe
Mustapha nem com o bellico Ali, foi fazer sua
queixa ao califa Abdelcader.
Cap. XIV — Da disputa que houveram
Mustapha e Ali por amor da princeza Ar-
minda e como se desafiaram para singular
combate.
Cap. XIX — Do combate que fez Ali
contra Mustapha e como ambos foram ven-
cidos pelo gigante Merlao, por artes do Nigro-
mante Massapatao, o qual vivia em Mecca,
142 VERDADES INDISCRETAS
junto do tumulo do seu infame propheta Ma-
fame de.»
O livro terminaria com a conversao da
princeza ao christianismo e seu casamento —
ou maridanga — com o conde de Olivares. . .
Mas nada disso se deu, leitor. Esta Ar-
minda de quern trato aqui e filha do turco Jose
Raber e mora a rua Buenos Aires, antiga do
Hospicio, no bairro turco, passeio que nao te
aconselho, por motivos hygienicos . . .
Constou a policia, segundo referem os
jornaes, que Arminda estava, por ordem do
pae, em carcere privado. Interrogado, decla-
rou o pae Raber que a filha tinha apenas re-
cato, para evitar complica9oes , . . E veio en-
tao a historia de um certo Mustapha, que Ihe
promettera uma casa, e de um certo Ali, que
Ihe promettera dois contos. Nenhum cum-
prira a palavra ; por isso a princeza, quero di-
zer, a filha do Raber, nao quiz fazer maridanga
com nenhum delles. A policia os mandou a
todos em paz.
E ahi tem o leitor a historia da Arminda,
que nao e princeza moura, mas apenas moura
filha de mercador. Decididamente sao muito
prosaicos os nossos tempos . . .
L'homme qui assassina
Esse pobre sargento que assassinou a
mulher (Livia, bello, evocative nome roma-
no !) e uma victima do preconceito de
ra9a, da falta de dinheiro e da inconsciencia
feminina. Seu sogro, um livreiro italiano, de-
clara que sempre se oppoz ao casamento delle
com a filha: primeiro por ser elle cede c6r
parda)); segundo por nao ter tanto dinheiro
quanto fosse necessario a nobre descendente
de um iialiano . . . Quanto ao preconceito de
raga, ve-se bem que esse livreiro, compatriota
de Dante, nunca se deu ao trabalho de abrir
uma tragedia chamada O Mouro de Veneza.
e que foi escripta por um certo William Sha-
kespeare ; si a tivesse lido, teria notado que a
sua patricia Desdemona, formosa e fidalga, se
apaixonou tambem por um soldado, que nem
ao menos era christao, que devia ser mais es-
curo do que o sargento, e que por sua vez a
VERDADBS WDISCRBTXS
^. nara ttagedias de amor,
matoua adaga, q"f ^ ^f esthetico e portaato
instrumento '""•^ "'^'^Vo rev61ver. Homem
„,uito mais nobre do que o ^^ ^^^^
de bom gosto, q"e j ^^ ao punhal.
bellatoliana, deve darpr^ ^^^^^
caso nao tenha "^/^^ "boseja de ouro
adaga antiga, recurva ^jo ^^^^^^^ ^ ^^.
burilado e "avejado <ie ^^^^^ ^^^^^^^
v61ver e arma ^\J^^ ^ ;j^uiheres vulga-
para abater ^aes, ho-nen ^paiKona-
res. Urn belle ^f^J^^^,^^,o de traged.a,
da, coUo branco e tf"P^f .j^ um punhal.
esse exige ofulgorda lamina ^^^ ^.^
Mais ainda, homem de bo g^ ^^i,.. deye
„,atar uma bella -""^^^^l^^ie de casaca, ella
matal-aapunhala nmte e ^
decotada-depois de "«• ^ ^^ ser fino,
champanha. Isto tem a ;an^^|^ ^^^ ^ ^,,^.
altamente aristocrat.co, e de p P^ ^^^
vilhosa <lir.mente da Pnv 9 ^ ^^^^ O
Poupa muito «abalho ao J^^^^ ^ es-
sargento, homem s mples ^^^.^ ^.^^
posa de dia e a revolver^ O .^ ^^ ^
[amentavelmene vulgar s'.P^ ^^^^^^ ^,.
ter caido mal ferida, o ^j^ericordia, um
vesse dado, como tiro ponta-pe,
ponta-pe em P'^^'^J"^^- ^enhoras e aos
q"« horror.sa a tod^ ^^^ ^^^ ^„,„ de
homens series, e bcg
I<*HOMA!B QUI ASSASSINA... 145
"ver, o que da certo cunho tragico ao crime,
distinguindo-o dos uxoricidios communs . A
grande raiva, a colefa d'aymore de que es-
tava possuido esse homem ! Nao e nada me-
diocre esse criminoso. A sua ira e dessas que
toldam por complete a razao. Sim, homem que
conserve ainda alguma parcella de senso com-
mum nao escouceia uma mulher viva, quanto
mais o cadaver de sua mulher ! Para que o sar-
gento ousasse dar-Ihe um ponta-pe no rosto,
depois della morta, era preciso que elletivesse
um immense orgulho offendido e um immen-
se amor desprezade — deis sentimentos peri-
gesos come leoes famintos. Havera quem o
cendemne ? Para tante, e preciso nao ser hu-
mane. A sua principal defesa esta justamente
no ponta-pe final. Si es seus advogados forem
inteiligentes, terao nesse couce a prova mais
evidente da providencial priva9ao de senti-
des. Esse ponta-pe, antes de ferir o rosto da
assassinada, espatifeu o libello da promotoria.
A defesa, com algumas phrases lyricas, dard
ao case o remate que cenvem. O resto fica por
conta da intelligencia e do cansago dos jura-
dos. . . Seja come f6r, ninguem pode con-
demnal-o, pelo menos a pena maxima. Lem-
bremo-nos, senhores,de que esse homem que,
sob o aguilhao de seu amor e do seu ciume,
^atou a mulher, podia ter feito cousa muito
10
146 VERDADES INDISCRETAS
peor: podia, segundo o conselho de Heine,
ter feito da sua d6r um poema e publicado um
livro de versos! A sociedade, absolvendo-o,
deve agradecer-lhe o tel-a livrado dessa cala-
midade . . .
Os crimes de amor
Em S. Paulo, um jovem jornalista, Ri-
cardo Gongalves, deu um tiro na sua amante
(amante, ou mulher, nao o sei bem), por ter
tido provas de que ella Ihe era infiel com um
medico a quern elle chamara havia tempos para
curar uma filhinha sua. Estourada esta trage-
dia, todos os jornaes sao unanimes em con-
demnar o medico : «Miseravel! Seductor!
Don Juan indecente !» E outras adjectivagoes.
E' evidenteque, num casodesses, ditticilmen-
te se livrara um homem dapechade seductor.
Mas tambem, por outro lado, parece que, num
crime de amor, nao se pode imputar toda a
responsabilidade ao homem, principalmente
quando a mulher causadora datragediatemos
precedentes de Maria do Carmo, a compa-
nheira de Ricardo Gongalves. Essa mulher,
com as suas infidelidades, foi causa do suicidio
do marido ; depois deste successo, foi viver
148 VBRDADSS INDISCRKTAS
com o cavalheiro «qiie a seduzira)) (6 sem-
pre o homem que seduz!). Um dia este foi
assassinado. Uniu-se ella, entao, com Ri-
cardo Gon^alves, poeta, jornalista, homem
de talento, segundo dizem. Maria do Carmo,
informam os jornaes paulistas, era morphi-
nomana, exactamente como o poeta. Quaes
seriam as leituras preferidas dessa creatura ?
Que genero de palestras cultivaria na inti-
midade caseira, quando estivesse a sos, com
o seu homem ? Tudo isso seria necessario sa-
ber, para poder formular juizo mais ou me-
nos approximadoda justi9a.Conhecidos os pre-
cedentes, admitte-se a tal «persegui9ao irre-
sistivel» de que tanto se fala para justifical-a
de ter caido nos bragos do medico ? E nao de-
clarou ella mesma terminantemente a Ricardo
que nao o amava mais ? E' possivel que o me-
dico a requestasse ; mas tambem e possivel
que elle o fizesse so depois de ter recebido
della uma ordem de aavangar)), dada silen-
ciosamente. com simples olhares, comosabem
fazer mulheres desse jaez. Custo muito a crer
na «persegui9ao irresistivel» de um homem
mogo para umamulher mae de alguns pimpo-
Ihos e batida ja por amores varios e tragedias
diversas. Concebe-se que um homem bello
exerga certa fascina^ao nos nervos de uma
inexperiente rapariga de dezoito annos, que
OS CRIMES DE AMOR . . . 149
buscano mundo, incessantemente, no ceo, nas
estrellas, nas flores, no ar que respira,em tudo,
impellida por uma fatalidade cosmica, conhe-
cer a Vida, decifrando o enigma do seu proprio
cora9ao. Essa pode ceder a ffpersegui9ao irre-
sistivel)) . Mas uma senhora experimentada,
doutora formada em amores tragicos, matri-
culadissima na classe das peccadoras, morphi-
nomanae voluvel, nao p6de lan^ar mao desse
recurso de defesa. aPersegui^ao irresistiveb
soffria ella, mas nao do exterior. Essa perse-
guigao vinha della mesma, do seu interior,
das suas entranhas, da calidez do seu tem-
peramento da vibratilidade dos seus nervos .
Como todas as grandes amorosas, trazia o
bacillo da infidelidade na massa do san-
gue . E e por isso inutil condemnal-a . Ella
e perjura em virtude das mesmas fdr^as natu-
raes que dao colorido as rosas e perfume is
violetas. Mas tambem acho que 6 injusti9a fa-
zer carga contra o medico, exclusivamen-
te. E' um conquistador profissional, dirao !
Oh ! senhores ! Nao haveria conquistadorcis si
nao houvesse mulheres conquistaveis. Nao ha
artilheiro que penetre em pra^a forte bem
guarnecida. As tropas so entram quando a
praga se rende . E ha pra9as que se nao ren-
dem nunca : Verdun, por exemplo. Verdun e
Lucrecia. . .
O jogb franco . .
Nessa campanha que a policia emprehen-
deu contra o jogo, ha facetas curiosas, como
em tudo quanto se faz neste paiz. A principio,
o Chefe de Policia pareceu nao se incommo-
dar muito com a jogatina. Os jornaes, porem,
comegaram a reclamar contra semelhante im-
moralidade. O dr. Chefe entao ficou entre a
cruz, que era o dever de olhar pela moral pu-
blica, e a caldeirinha, que era o seu espirito
liberal. Nao sabia o que fazer. Nao sabia o
que resolver. O'duvida! Pobre Hamlet da
rua daRela9ao! Afinal.depois de muito reflec-
tir, achou S. Ex. a formula capaz de conciliar
OS mais altos interesses da moral com os mais
baixos interesses dos banqueiros, croupiers,
pharoesy moscas e outros animaes da immensa
fauna dos jogadores. A formula salvadora da
policia era esta : o jogo so seria permittido de
cinco horas da tarde em deante ! De sorte que,
152 VERDADES INDISCRETAS
transportada do terreno pratico para o terreno
especulativo, a decisao do Chefe de Policia
podia ser reduzida ao seguinte principio, que
Kant infelizmente nao inscreveu na Critica.
DA Razao Pratica: «Ojogo porserladroeira.
e crime ate cinco horas da tarde : dessa hora.
em deante deixa de ser crime para ser ac9ao
indifferente, caso nao seja innocente« . Sic
volo, sic jubeo ; sit pro ratione voluntas. Como-
se ve, o Dr. Chefe esta creando novas inter-
preta96es da vida. . . Comegou, pois. o jogo-
a funccionar vastamente das cinco da tarde
em deante. E' claro que, com semelhante
salvo-conducto, a jogatina alastrou se . Os-
jornaes bradaram as armas novamente. Nao*
podia ser assim. Era preciso dar provide n-
cias serias para livrar a cidade de seme-
lhante cancro . O Dr . Chefe novamente
poz-se a pensar. Quem pensa, inventa. For
pensando que o monge Schwartz descobriu
a polvora . Foi tambem pensando que o Dr.
Chefe descobriu um principio de moral, ao>
decidir que nao houvesse clubes no centra
da cidade, mas somente nos arrabaldes ! Eis o
principio : aO jogo, sendo uma ladroeira, nao
pode existir no centro de uma capital civiiisa-
da, mas nos arrabaldes nao faz mal nenhunt
que formiguem 6s trapaceiros». Devo decla-
rar francamente que a campanha contra ojogc^
O JOGO FRANCO... 153
me e perfeitamente indifferente. Nao vird
abaixo o mundo si a policia cruzar os bra90s
deante do numero alarmalnte dos tripots da
capital. O que me interessa nisso, como em
tudo, sao OS seus aspectos metaphysicos, os
aspectos superiores. Por este lado, posso ga-
rantir ao dr. Chefe que Ihe sou muito grato
por aquelles dois novos principios de moral
que me ensinou . Quando estive nas aulas de
philosophia, ouvi muita coisa a respeito das
sciencias moraes : mas nao conhecia nem po-
dia conhecer aquelles dois principios admi-
raveis que S. Ex. acaba de gloriosamente
descobrir . Mestre, muito obrigado ! . . .
Preconceitos de linguagem
Na Rumania, segundo dizem os jornaes
francezes, que agora muito se interessam por
tudo quanto diz respeito aos moldo-valaquios,
na Rumania ha certas palavras, que em todas
as outras linguas cultas tem significagao no-
bre e que entre os rumenos tem significagao
pejorativa. Chamar, por exemplo, a algum
rumeno marquez, ou condessa a alguma ru-
mena, e commetter injuria e grande. Entre
elles, nao se diz principe em rumaico, porque
esta palavra tem a significa^ao analogica de
jogral; de sorte que adoptaram la a palavra
franceza prince, para designar qualquer mem-
bro da familia real . A palavra rei tambem
e injuriosa. Tanto assim, que, na traducgao
do livro biblico dos Reis, escrevem os rume-
nos LivRO DOS Imperadores !
Em portuguez ha tambem palavras de
significagao primitivamente honesta e que en-
156 VERDADES INDISCRETAS
tretanto agora nao podem ser pronunciadas
deante de pessoas de respeito. No norte de
Minas, por exemplo, como no norte de todo
o paiz, chamar dama a uma senhora e arriscar
a pelle. Dama, la por aquellas plagas, e amu-
Iher perdida)).
A palavra moga pode ser pronunciada
deante de quern quer que seja. «Esta menina
esta ficando moga. — Sua filha e uma bella
mogaa — sao expressoes correntes; entretanto,
querendo alguem referir-se a amasia de al-
guem, diz : kA moga de Fulano!»
Rapariga f E' uma das palavras mais lin-
das da nossa lingua. Em Minas, entretanto, —
rapariga applica-se mais as mulheres do ser-
vigo domestico, isto e, amas, cosinheiras,
arrumadeiras, etc . Aqui, ja vae tendo signi-
ficagao pejorativa : casa de raparigas e o
mesmo que bordel. Ora e um absurdo isso .
Rapariga e simplesmente feminino de ra-
paz . Seria encantador poder toda gente di-
zer, como ainda ha dias ouvi dizer a um espi-
rito eminente, que me da a honra da sua ami-
zade : « V. nao imagina que rapariga valente
e minha mulher.»
Mae/ Nao se discute a belleza desta
suavissima palavra. Pois tambem a palavra
mde vae assumindo significa^ao equivoca. Em
certas locugoes e um vocabulo pelo menos
PRECONCEITOS DE LINGUAGEM. .. 157
suspeito. Os jornaes ji comegam a substituil-o
por progenitora. E' incrivel ! Que qualquer
palavra possa derrancar com o tempo com-
prehende-se ; mas a palavra mde / f O noticia-
rio elegante tem receio de dizer : « Faz annos
hoje a sra. Dona Fulana, muito digna mae
do nosso amigo sr. Beltranoa.Em vez de mae,
escrevem progenitora, que ^ uma palavra
erudita, secca, como todas as coisas eruditas,
fria e pernostica. Mde e alguma coisa tepida,
doce, nobre como o collo materno. Progeni-
tora e simplesmente uma delicadeza de mo-
leque hem fallante.
Mae, collegas, mae ! Devemos escrever
«a mae do sr. Fulano», da mesma forma
que escrevemos «o pae do sr. Beltrano» e
c(0 filho de Dona Sicrana)). Ninguem diz na
intimidade — «vou beijar minha progenito-
ra*, mas simplesmente, — «vou beijar minha
mae» .
E' para desejar que os jornaes abando-
nem de uma vez a pal^LVia progenitora, que e,
etymologicamente, muito mais grosseira do
que mde. Progenitora comp6e-se do prefixo
pro e da raiz genit, de gigno, gignis, genui,
genitum, gignere, que quer dHzer gerar. De
maneira que, posta em bom vernsiculo, proge-
nitora e a pro ou ante-geradora do sr. Fulano^
Nao sei onde esta a delicadeza desta expres-
158 VKRDADES INDISCRBTAS
sao... Por conseguinte, de uma vez para sem-
pre, estabelegamos que os homens tern vir-
tuosas e dignas mdes, e nao ridiculas e pet-
hosticas progenitoras.
O Feiticeiro
Um guarda civil que rondava de madru-
gada pela rua dos Arcos, percebeu, no pavi-
mento terreo de certa casa, uns claroes incon-
stantes e fugidios. Em outros tempos, qual-
quer dragao da ronda se teria persignado e in-
vocado o auxilio do alto contra visoes diabo-
licas. Ca o nosso guarda nao pensou em tal .
Claroes inconstantes e fugazes? Principio de
incendio. Suppondo,pois,tratar-se de incendio,
bateu a porta da dita casa, que se abrio logo .
O civil, com algumas pessoas mais, entrou,
correu ao andar terreo e deu com o inespera-
do. Nao havia incendio. Havia simplesmente
quatro velas accesas pelo portuguez Lino de
tal, que estava em frente dellas a dizer coi-
sas cabalisticas e a atirar ao fogo sal e quero-
zene. Interrogado, respondeu Lino que aquillo
elle o fazia para afastar certas coisas que Ihe
atrapalhavam os negocios. O guarda pensou
160 VERDADKS INDISCRETAS
la comsigo : « Este homem esta em sua casa,
s6zinho, pacificamente tratando de regulari-
sar OS seus negocios. Ha varies meios de re-
gularisar os negocios : por ordem na escripta
levantar um emprestimo, passar algumas notas
falsas, arranjar modos de ser fornecedor do go-
verno, etc. Ora este homem nao langou mao
de nenhum destes meios ; logo deve ser pre-
so.tt E com effeito prendeu Lino e o levou
para a delegacia. O delegado, depois de ou-
vil-o, respondeu que nao Ihe encontrava culpa
e mandou soltal-o. E' evidente que o delega-
do fez bem ; mas nao podia ter feito melhor,
si, al^m de por o preso em liberdade, man-
dasse dar-lhe todas as satisfa95es a que tem-
direito qualquer cidadao que e preso por en-
gano? Porque Lino foi victima de engano.
Esse homem, si estivesse em sua casa, aquella
hora, debrugado sobre a sua secretaria, ali-
nhando cifras num grande livro para poder
regularisar os seus negocios, com certeza nao
seria incommodado. Ora, quando elle atirava
sal e querozene ao fogo, estava, a seu modo,
methodisando a sua vida de mercador. E uma
vez que esse systema Ihe parecia eflficaz e nao
perturbava a ordem, cumpria a policia respei-
tal o. Respeitemos, pois, os feiticeiros. . .
Bailarinas...
Bern fazem as mulheres : vestem-se de
branco ; decotam-se o mais que podem ;
encurtam as saias. . . Uma vez que paes e
maridos nao se opponham a tal, que temos
nos com isso ? Esses saiotes suggerem muitas
coisas, principalmente lembrangas do passado.
Quando as vejo, lembro-me de bailarinas e
penso quanto estamos adiantados relativa-
mente ao seculo de Luiz XIV, por exemplo .
Quando se fundou a primeira scena lyrica em
Paris, por iniciativa do padre Perrin, as baila-
rinas eram . . . machos !
A appari9ao de mulheres no palco seria
urn escandalo. So em 1681 Lulli conseguiu a
cumplicidade das damas da corte para que as
mulheres pudessem representar no seu baila-
do Triompke de t Amour. As princezas mais
soberbas tomaram parte nesse bailado. Entre
outras : a Delphina de Fran9a, Mile, de Conti,
11
162 VERDADES INDISCRETAS
a princeza de Guemene, como nympha de
Diana, Mile, de Poitiers, de nayade, Mile, de
Sevigne, futura condessa de Grignan . . . Dias
depois, o bailado foi repetido para o grande
publico, na Opera, com as primeiras bailarinas
contractadas, que eram apenas quatro. Suc-
cesso louco ! A direcgao da Opera contractou
mais bailarinas ! Mas ninguem pense que ellas
dansassem de maillot e saiotinho de gaze e
barbatanas como hoje. Em primeiro logar,
cada bailarina vestia-se como queria ; em se-
gundo logar vestiam-se a moda do tempo,
isto e, saia cumprida e larga, busto acochado
em collete de barbatanas, mangas apertadas
ate o cotovello. De pernas nem signal . . . O
aphorismo fundamental neste assumpto hoje
em dia e : « O primeiro dever de uma baila-
rina e mostrar as pernas.)) Naquelle tempo
este aphorismo ainda nao existia. So em 1726
a Camargo teve a ousadia de apparecer de
saia curta em scena . Mas que escandalo t
Grimm, que estava em Paris nessa occasiao,
conta que os jansenistas protestaram contra
tao grande falta de decoro. Os molinistas, pelo
contrario, approvaram. A Sorbona teve de
metter-se no meio da contenda. Mas a moda
das saias curtas pegou . . . Entretanto havia
ainda no traje das bailarinas uma pe^a des-
graciosa : eram as calgas, que vinham ate os
BAILARINAS. . . 163
joelhos e appareciam atrozmente sob a saia.
Ah ! nao houve duvida : supprimiram-se as
cal9as! Mas uma noite, na Oper4 Mile. Ma-
riette ia esbogar um passo de dansa quando a
fimbria da sua saia se prendeu numa quinade
scenario de tal maneira que a pobrezinha nao
teve remedio senao exp jr ao publico, durante
tres segundos, les dessous du panier . . . A
Mile. Maisonneuve succedeu egual aventura
dias depois no Theatre Fra7i(,jis. Entao as
autoridades inquietaram-se. A policia baixou
um ucase, tornando obrigatorio o uso do cal-
gao para todas as comediantes, cantoras, co-
ristas, bailarinas e figurantes de todos osthea-
tros de Paris. Mas o calgao era desgracioso .
Deixava muita dobra em evidencia. Ahi por
volta de 1791, ja em pleno dominio da Revo-
lugao, um sujeito chamado Maillot inventou
o accessorio que Ihe immortalisou o nome .
Agora, sim, a illusao da nudez era perfeita,
principalmente quando o maillot era roseo
claro. Foi logo adoptado em todos os palcos
da Europa, menos em Napoles, onde a c6rte
se escandalisou. O interessante e que o proprio
Papa permittiu o uso do maillot em todos os
theatros dosseus Estados; apenas exigiu que,
em vez de roseo, fosse azul! E ahi estd come,
de Luiz XIV para ca, as bailarinas foram dimi-
uuindo as roupas,atechegarem a Isadora Dun-
164 VERDADES INDISCRETAS
can, que dansa apenas de kiton grego. Para
este clima selvagem o kiton e o traje natural-
mente indicado. A nao ser que prefiram voltar
ao vestuario tradicional do nosso clima: a sim-
ples cinta de pennas ao redor da cintura .
(O tacape e dispensavel). Deve ser muito hy-
;gienico; e a prova e que nao ha na nossa
historia o mais vago indicio de que os indios
morressem de insola^ao. . .
O jogo e vicio ?
Outra vez entra o jogo em discussao .
Isso faz parte do programma annual de cada
folha. Pergunta toda a gente si a policia pode
regulamentar o jogo. Si pode? Pode — nao :
deve. Os jurisconsultos, os homens de toga e
garnacha, quando se Ihes faz esta pergunta,
explodem em escrupulos por causa do Codigo
Penal. O Codigo prohibe o jogo; logo o go-
verno deve punil-o. Regulamental-o nunca.
Mas, nesse caso, reformem o Codigo. Esta
verificado que todos os codigos domundo sac
impotentes para exterminar o jogo. Haja o que
houver, o homem joga. O jogo e a prostitui9ao
nunca deixafrao de existir. Neste caso, incor-
poremos estas duas respeitaveis instituigoes
aos nossos habitos e trataremos de regulamen-
tal-as, afim de evitar que ellas continuem a
produzir os males que produzem. «Oh ! ex-
clamam os moralistas, regulamentar o jogo €
166 VERDADES INDISCRETAS
encampar o vicio». Que preconceito! Ojogo
e simplesmente uma asneira, si quizerem; mas
nao se pode deixal-o campear infrene, so por-
que o governo nao pode encampar o vicio. O
sujeito que pega todo o seu dinheiro eo leva
diariamente a banca dojogochama-se vulgar-
mente um viciado. Pura convengao, baseada
no conceito do peccado. O nosso Codigo Pe-
nal esta baseado neste principio theologico :
o peccado. Persegue-se ojogo, no fundo, por
ser peccado; perseguem-se as meretrizes, por-
que sao peccadoras. E esses peccados todos
reunidos — o jogo, oamor clandestino e ou-
tros — chamam-se o Vicio. Questao de pala-
vra. Pois regulamentemos o vicio ja que nao
e possivel extirpal-o. O individuo que arrisca
o seu dinheiro aos azares do panno verde e
fica a noite inteira esperando que de o 5 ou
o duplo zero nao e um criminoso, uma vez
que Ihe pertenga o dinheiro que elle gaste. Tal
homem e simplesmente um asno. Nesse caso,
ja que eimpossivel cural-o da sua asnice por-
que permittir que s6 os profissionaes se apro-
veitem della? O governo deve ser pratico e
obrigar esses profissionaes a entregar ao Es-
tado, para obras humanitarias, grande parte do
dinheiro que surripiaram ao pobre diabo que
se deixou depennar. Pouco importa que se
trate de encampar o Vicio. Nao devemos fi-
O JOGO t vicio?... 167
car presos a superstigoes verbaes. E si o gover-
no tern tao grande repugnancia em encampar
o Vicio, nesse caso faga uma coisa: antes de
Tegulamental-o, decrete que o jogo nao e vicio
e explore-o em seguida . . .
A elegancia masculina
Correspondencia de Paris da noticia de
que vao voltar as modas romanticas para os
homens. Ja em Paris se tern exposto os novos
modelos de txaje d'homem, modelos copiados
de Alfredo de Musset: chapeo de largas abas,
levemente levantadas d'ambos os lados, casaco
longo e de cintura justa; grayata borboleta
e cal9as apertadas principalmente na parte in-
ferior, proxima aos pes, Estas sao as linhas
geraes. As minucias s6 poderao ser conheci-
das a vista dos figurines.
Applaudamos a ressurreigao das modas
romanticas. O realismo estragou tudo, ate a
elegancia masculina. Vamos finalmente ficar
livres das detestaveis modas norte-americanas,
com OS seus palet6s saccos e intoleraveis bom-
bachas. A victoria do americanismo nas se-
cedes de modas representa o maior desastre
soffrido pelo bom gosto masculino neste prin-
170 VERDADES INDISCRETAS
cipio de seculo. E' perigo, e perigo social gra-
vissimo, acompanhar os Estados Unidos nesse
capitulode elegancias.Podemos acompanhalos
em materia de electricidade, organisa9ao ban-
caria, liberdade religiosa, ordem politica e coi-
sassemelhantes. Em questao demoda, nao. A
moda, por menos que parega, e o reflexo das
ideas e tendencias de um povo. Uma cabel-
leira empoada e de rabicho,porsi so permitte
reconstituir toda a physionomia moral, social
e artistica do seculo XVIII: a ironia de Vol-
taire, o pincel de Boucher, a inspiragao de
Gliick, a gra9a de madame de Pompadour . .
Uma bombacha americana basta para demon-
strar toda a ausencia de bom gosto numa nagao
de grandes exigencias no aperfei^oamento
dessas coisas chatas e indispensaveis que se
chamam — Liberdade e Democracia — mas
ainda esteril em questoes de modas . . .
Si a moda e o reflexo das ideas ; e si nos
so adoptamos ideas que nos venham de Franga
sejamoslogicos: adoptemosso as modas bem
genuinamente francezas. Quanto as modas
norte-americanas, appliquemos-lhe prudente-
mente a doutrina de Monroe, e aguardemos
OS modelos de Alfredo de Musset, sem nos es-
quecermosque ellesbempodem fazer o mila-
gre de resuscitar os modelos George Sand . . .
A elegante e o mendigo
Minha senhora — Hoje, pela manha, pas-
sando eu casualmente pela porta da matriz da
Gloria, no largo do Machado, como saisse da
egreja muita gente, quedei-me a olhar os que
desciam as escadas, aos grupos, ou isolada-
mente. E V. Ex., a quern nao conhe^o, era das
mais formosas mulheres que vi descer. O seu
vestido curto, de seda azul marinho ; as suas
botinas de cano alto ; aquelle chapeo encan-
tadoramente simples ; o sorriso com que V.
Ex. falava a sua companheira ; os seus cabel-
los de um louro infernal (e sem auxilio d'agua
oxygenada, o que e raro) — tudo isso me
fazia suppor que V . Ex . fosse um daquelles
entes que no tempo do finado Jose de Alencar
e do mallogrado Garrett se chamavam : o Anjo
do Amor, o Anjo da Esperanga, oanjo disto,
o anjo daquillo . . . Vi mais o seguinte : quan-
do V. Ex. descia os ultimos degraus, esten-
deu-lhe um mendigo a mao a esmola. V. Ex.
172 VERDADES INDISCRETAG
olhou para elle indifferentemente e seguiu seu
caminho com a companheira, sem Ihe dar um
niquel. Fiquei desilludido, nao da sua formo-
sura, mas da sua caridade . . . para com os
belgas . Aquelle mendigo e belga, minha se-
nhora. Tern, portanto, direitos adquiridos i
caridade de todas as brasileiras. Bem sei, 6
creatura divina, que os mendigos devem tra-
zer na lapella as cores alliadas para poderem
receber a sua esmola : os brasileiros devem
tambem trazer as cores nacionaes na gravata
ou no chapeo, em forma de cocarde, para li-
vrarem as suas patricias do trabalho de abrir a
bolsinha e . . . Mas si aquelle pobre nao trazia
as cores alliadas, era isso devido a campanha
dos submarinos allemaes, que nao permittem
a exportagao de fitinhas tricolores ca para estas
bandas. Garanto-lhe, porem, minha senhora,
que o pobre homem era belga ; e V. Ex., cujo
marido e com certeza da Liga pelos Alliados e
vendedor de carne aos allemaes, nao pode
negar auxilio aos belgas, coitadinhos, que sao
OS flagellados da Europa. Espero que para
outra vez, minha senhora, a sua bondade seja
pelo menos egual a sua belleza. Nao se es-
que9a do velho proverbio : Quern da aos po-
bres empresta aos belgas. Nao ! Nao e bem
isto ! O proverbio authentico e est'outro :
Quern da aos belgas empresta a Deus.
Le Roi s'amuse
Telegramas de Londres dizem que el-rei
D. Manoel II de Portugal deslocou o torno-
zelo quando joga uma partida de lautennes.
Ora ahi esta um telegramma que nao
devera ter sido transmittido ca para a America
nem para parte alguma.
Nao quero dizer que Sua Majestade seja
obrigado a ir acutilar tudescos nos campos de
Franga. Sua Majestade nao e obrigado por
lei nenhuma a ser heroe ; mas e obrigado a
manter certa linha . . . Nao se concebe que
Sua Majestade, o primeiro fidalgo do seu
reino, quero dizer, da Republica de Portugal,
em vez da espada tenha agora na mao uma
simples raqueta. Perante o conilicto europeu,
acho pouco . . .
Eu estou vendo daqui o quadro ca em
Franca e la em Africa, francezes, inglezes e
ate portuguezes transportados em macas para
174 VERDADES INDISCRETAS
OS hospitaes de sangue, ou mandados em
massa para a sepultura : la em Windsor, num
parque aristocratico, Sua Majestade torce o
pe, e amparadoporum jovem lord, e, cercado
das senhoras, vae mancando e gemendo para
o seu quarto, esperar que venha um physico
recompor-lhe o tornozello... Pode ser elegan-
tissimo, mas, francamente, todos nos, que
temos o mais alto conceito das Majestades,
preferiamos ler um despacho como isto :
((LoNDRES, 22 — Na ultima carga de
lanceiros em Ypres, recebeu um langago no
peito o Sr. Dom Manoel II, rei de Por-
tugal, que apezar de ferido, continuou a bradar
Por Sant' lago ! e a bater-se ate que Ihe falta-
ram as forgas e elle cahiu do cavallo. Sua Ma-
jestade foi transportado sem sentidos para as
ambulancias e destas para Paris, depois dos
curativos mais urgentes. E' melindroso o seu
estado. A' sua cabeceira velam as Sras.
Rainhas D. Amelia e Victoria)).
Confesso que era muito mais incommo-
do para Sua Majestade : era porem, mais di-
gno de rei . . .
Casamentos por annuncios
Repugna a razao que os casamentos se
fa9am por meio de annuncios ? Nao. Que e
um casamento ? Um contrato. Juridicamente,
quer em direito civil, quer em direito cano-
nico,-nao e outra coisa. Ora, si e um contrato,
nada impede que se venha a fazer por meio
de annuncios, como si se tratasse de uma sim-
ples compra de gado, de gazolina, etc. De
modo que a razao nao repugna que um casa-
mento se realise por via de annuncios distri-
buidos nas folhas. O essencial e que, na assi-
gnatura do contrato, haja liberdade plena en-
tre as partes contratantes .
Repugnara, porem, ao coragao ? Aqui o
problema assume proporgoes mais complexas.
Le coeur a ses raisons que la raison ne connaif
pas, dizia Pascal. Querem os sentimentaes que
ao casamento preceda largo e intimo conhe-
cimento reciproco dos nubentes. Dizem que
176 VERDADES INDISCRETAS
sao exigencias do cora9ao . Nao creio muito
nas exigencias do coragao-Num caso ou noutro
ellas existem com effeito. Nao constituem,
porem, regra geral. O homem moderno nao
e um animal amoroso : e antes um animal in-
teresseiro. Quando se diz o homem, esta claro
que se indue tambem a mulher. O casamen-
to e muito menos acto de amor do que de
conveniencia. fn omnibus respice finem, diz a
velha. Moral. Ora, qual e o fim do casamen-
to ? A propagagao e a conservagao da espe-
cie, dizem. E o amor, quando se satisfaz, cuida
da conserva^ao da especie ? Absolutamente .
O amor verdadeiro e egoista. Os proprios
entes reaes, os proprios entes sensiveis Ihe
inspiram interesse mediocre. Si e assim. que
interesse pode inspirar ao amor a conserva^ao
da Especie, que e apenas uma abstragao, ou
melhor, uma metaphora? Fallando mais scien-
tificamente : quando o macho humano esta fe-
cundando a sua femea, pensard algum delles
na conservagao da especie ? Sabe toda a gente
que nao . . . Portainto o casamento, como con-
trato, nao e acgao de amor, E' acgao de con-
veniencia, dictada pelo direito positivo. Si 6
de conveniencia, nao e acto de coragao. Logo
e acto de razao. Si e acto de razao, os seus
resultados dependem da certeza dos calculos,
do ajuste das probabilidades e do jogo razoa-
CASAMENTOS POR ANNUNCIOS. . . 177
vel das circumstancias . Logo, nada impede
<{\ie elle venha a realisar-se tendo per ponto
<ie partida o annuncio. Isto pode nao ser sen-
timental. Le cceur a ses raisons . . . Afifirmo,
porem, que e logico e, portanto, perfeitamen-
te adoptavel, pois que na vida pratica a logica
das ac96es e muito mais util do que o senti-
ment© .
12
J
Amores hediondos
Abro OS matutinos (para consultar a opi-
niao dos collegas sobre o estado da coisa pu-
blica) e vejo ao alto da pagina: Tragedia!
Outros titulos e subtitulos ainda. Entra afinal
a narrativa e entram as photographias referen-
tes ao caso. Examino estas ultimas. Resolvo
ler a noticia. O caso e vulgar. Um Joao qual-
quer foi abandonado pela sua Joanna, a qual
se atirou aos bragos de outro Joao. Joao I, en-
ciumado, assassina a tiros este Joao II. Prom-
pto . . . Entao examino a photographia que
tern por baixo esta legenda : <c Maria do Rosa-
rio, a causadora da tragedia. » Cbntemplo o
retrato da « causadora do desastre» e fico a
pensar. Primeiro, rio; depois penso; afinal
tomo a rir . O riso ainda e a maneira mais
commoda de apreciar uma tragedia passional.
A causadora da tragedia ^ uma preta trom-
buda de carapinha, com certeza immunda,
ISO V^RDADES INDISCRETAS
horripilante . . . O assassin o e o assassinado
sao brancos, sendo que o primeiro tern ape-
nas vinte e um annos. E' difficil explicar
porque um homem chega a matar um rival
por causa de mulher tao horrivel. Sim, e
inexplicavel, porque eu conhego varies cava-
Iheiros, maridos ou amantes de mulheres for-
mosissimas, os quaes cavalheiros sabem que
ellas OS enganam, e entretanto nao matam
ninguem ! Nem ao menos reclamam . . . O
homem da Favella, por causa de uma hedion-
da preta, foi para a Deten^ao !
Talvez tenlia razao aquelle philosopho
que, negando a existencia da belleza feminina,
t. disse que esta so existia na imagina9ao do ho-
\ mem, do mesmo modo que a belleza da galli-
nha s6 existe na imaginagao do gallo . Si e
assim, devia ser interessante conhecer a con-
cepgao da belleza que tera o assassino aman-
te da Carmen Hottentote, da Favella . Estes
Gonceitos, alias, nao sao dos mais novos. Vol-
taire ja OS admittia quando affirmava que
para o sapo a expressao maxima da belleza
estava na sapa: le chef d xuvre pour le crapaud
c est la crapaude. E' a unica maneira mais ou
X- menos razoavel de explicar os ciumes fataes
do amante da Maria do Rosario . . .
Como fazer a paz
O sr. Wilson, presidente dos Estados
Unidos, hontem achava ainda inopportuna
qualquer tentativa em favor da paz. O sr. Hen-
derson, ministrro sem pasta e membro do Con-
selho de Guerra inglez, discursando num ban-
quete dos syndicatos inglezes, declarou que
a Inglaterra estava disposta a continuar a
guerra durante qualquer tempo, fosse curto,
fosse longo. O sr. Henderson esqueceu-se in-
felizmente de dar-nos a opiniao particular dos
syndicatos inglezes a respeito da guerra . . . O
embaixador japonez em Paris, desmentindo
boatos mentirosos, affirmou que o Japaq coh-
tinua firme, ao lado dos alliados, disposto a
tudo, comtanto que a Entente triumphe. Em-
fim toda a gente so pensa na guerra. Por em-
quanto ninguem pensa na paz, si nao f6r pos-
sivel obter o que todos os belligerantes, cada
qual com as suas intengoes, chamam (fcondi-
182 VBRDADES INDISCRBTAS
goes de uma paz duradoura ...» Ora hontem,
estando sozinho a ler, lembrei-me de um meio
facil de conseguir a terminagao rapida da
guerra. Sob a direcgao do sr. Jean Hanoteau,
La Revue Hebdomadaire, de Paris, publicou
em 1913 os Souvenirs d'un t^moin de la re-
TRAITE DE RUSSIE ET DES CAMPAGNES DE 1813
ET 1814, de Dominique Renaud, official inten-
dente da Grande Armee.
Este riz-pain-sel conta as coisas com
muito bom humor. Narra elle que havia no
exercito um pobre diabo que passara dois
annos na Trappa, onde se mettera voluntaria-
mente, paraver si assim conseguia evitaro re-
crutamento. Descoberto na suatoca, foi de la
arrancado e leva.do d forga para o quartel; Id,
por^m, vendo ser impossivel fazer delle um
soldado ao menos soffrivel, deliberaram os
commandantes transformal-o em simples fa-
chineiro; e o nosso homem Id ficou a cuidar
de palha, lixo e feno ... O silencio que elle
fora obrigado a guardar no convento accumu-
lara nelle, durante dois annos, tal desejo de
falar, que era uma verdadeira matraca. Nao
parava de tagarellar k direita e a esquerda .
Medroso como uma lebre, bastava-lhe ouvir
um tiro de espingarda para comegar a tremer;
e, ao primeiro tiro de canhao, entupia os ou-
vidos de algodao, que trazia sempre comsigo.
COMO PAZSR A PAZ. . . 183
O que todos notavam era que elle nao pas-
sava por uma egreja, fosse onde fosse, sem
entrar e rezar alguns, instantes. De uma feita,
indo a uma egreja, quasi foi preso pelos prus-
sianos, mas conseguiu salvar-se, correndo
como um gamo. Um dia perguntaram-lhe que
diabo ia elle fazer tantas vezes as egrejas.
Admirar as imagens, a architectura, os monu-
mentos?
— «Nao, respondeu o ex-trapista; vou
<iizel-o a voces que soffrem como eu. Eu,
quando vou a egreja, e para pedir a Nossa
Senhora que mande colicas a todos os que
sao causa da guerra.
— E acreditas que isso faria cessar a
guerra?
— Oh ! tenho certeza, porque tenho co-
licas muitas vezes e sei o que sao ellas . . .
O certo e que tempos depois a guerra
acabou-se. Napoleao foi para Santa Helena .
A paz reinou em todo o mundo . Nao seria
bom que a Virgem mandasse colicas aos bel-
ligerantes ?
A Irianda
No seu ultimo discurso perante o parla-
mento britannico, alJudiu o sr. Lloyd George
i. questao irlandeza pela seguinte forma :
«Desejaria tambem dizeralgu-^
ma coisa hoje acerca da questao ir-
landeza, mas s6mente direi o se-
guinte: desvanecer-me-ia que fosse
possivel fazer que se dissipasse o
mal-entendido que existe entre a
Gra-Bretanha e a Irianda, e que, de
ha seculos, si e uma fonte de mise-
ria para uma, 6 um embarago, uma
causa de fraqueza para a outra .
«Os erros nao estao todos do
mesmo lado. Sente-se que o nosso
movimento se opera numa atmos-
phera de suspei^ao. Nao so os ir-
landezes desconfiam dos inglezes^
186 VBRDADES INDISCRETAS
como tambem — o que e mais grave
— OS irlandezes desconfiam, elles
proprios, uns dos outros. Si essa
desconfian9a pudesse desapparecer,
creio que se poderia verificar um
acto de reconciliagao, que tornaria
a Irlanda e o Imperio maiores do
que nunca o foram . »
Nao e s6 o primeiro ministro da Ingla-
terra que deseja ver dissipado o ccmal-enten-
dido que existe entre o Gra-Bretanha e a Ir-
landa)). O mundo inteiro o deseja. Deseja
e admira a notavel habilidade com que os in-
glezes, sempre que se referem a Irlanda, nunca
alludem si nao «ao mal-entendido)) existente
entre a Inglaterra e a ilha de S . Patricio.
Quando se le qualquer documento inglez,
ainda os mais respeitaveis, os mais graves e
impertigadamente officiaes, cumpre nao per-
der de vista que a Inglaterra, si e a terra clas-
sica da liberdade, e tambem a patria do hu-
mour. Ha sempre um pouco de Charles Di-
ckens e de Bernard Shaw nas affirm agoes
mais solemnes dos primeiros ministros ingle-
zes. Com effeito os inglezes entraram ha se-
culos pela Irlanda a dentro; subjugaram-na,
impozeram-lhe a Re forma protestante que Ihe
repugnava e que so mais tarde foi attenuada.
Ao tempo de Henrique VIII, a Irlanda catho-
A IRI^ANDA 187
■lica foi tratada pelos anglicanos como a Polo-
nia catholica, ao tempo de Maria Thereza, foi
tratada pelos austriacos e pelos russos . Foi
preciso que a eloquencia de O'Connell com-
movesse a Kuropa no principio do seculo XIX,
para ^que os irlandezes obtivessem alguns
direitos, que depois Gladstone ampliou libe-
ralmente. Mas a verdade e que os inglezes
continuam a dominar a Irlanda, por proces-
sos um pouco diversos dos empregados por
Henrique VIII e Isabel, mas, emfim, sejacomo
f6r, continuam a dominar a Irlanda. Vae dahi,
vem o sr. Lloyd George e declara que teria
muito prazer em ver desfeito o mal-entendido
que ha seculos separa a Irlanda da Inglaterra...
Eu estou muito longe de ter competen-
cia para ser ministro da Inglaterra; entretanto,
permitto-me a liberdade de indicar ao sr.
Lloyd George o caminho mais curto para ver
dissipado esse secular « mal-entendido »: basta
que o governo inglez conceda autonomia aos
irlandezes, aquella autonomia que elles ja ti-
nham «ha seculos» e que os inglezes toma-
ram. . . Os amigos inglezes precisam de ser
logicos : combater a Allemanha por causa da
neutralidade da Belgica e continuar a ter a Ir-
landa sob o guante de ferro de Albion e, pelo
menos, um contrasenso. O caso da Irlanda 6
muito parecido com o da Polonia ... Os in-
188 VERDADES INDISCRETAS
glezes, com o seu gros bon sens, devem saber
disso melhor que qualquer outra na^So.
Quanto i. desconfian9a dos irlandezeft
uns pelos outros, isso e li com elles. Que me
importa a mim que os filhos da familia visinha
sejam desconfiados entre si? O que a con-
sciencia ordena e que eu os deixe em paz e
nao procure, nem directa nem indirectamente,
servir-me dessa desconfian9a para disputar-Ihes
o patrimonio . . .
A Mulher e a Mentira
A Mulher e inimiga da Verdade. Quer
isto dizer que ella minta por systema? Nao.
Mente por instincto. Systema suppoe
«ordem» ; ora a mentira feminina e sempre
uma fonte de desordens moraes e materiaes .
Tambem nao quero dizer que uma vez por
outra a Mulher nao diga algumapequena ver-
dade. Dil-a ; mas continua sobretudo a nao
gostar de « saber » a Verdade. A moga solteira
mente menos do que a casada, e, alem disso,
supporta mais a verdade do que a ultima. Com
a mulher casada da-se um facto curioso : aos
filhos ella pede sempre a verdade ; ao marido
obriga a mentir. Ha rapazes que mentiram
pela primeira vez depois do casamento . . .
Qualquer de nos sabe, por experiencia, que
nossas maes nos pediam sempre a verdade
quando eramos crean9as :
190 VERDADBS INDISCRBTAS
— An da, meu bem ; dize a verdade ; si
disseres a verdade, nao te castigo ; quern que-
brouajarra?
— Fui eu.
E nao castigava, realmente. Obtivera a
verdade. . .
Ao marido, pelo contrario, ellas exigem
mentiras. Supponhamos que um marido,tendo
estado num clube, aptnas conversando com
companheiros e companheiras alegres, ao che-
gar d casa diga sinceramente i mulher: «Es-
tiveno Clube com Fulano eMIIe. une telle. ..ti
Arderia Troya. De sorte que elle mente, para
nao desgostar a esposa, inimiga da verdade .
Mais ainda: que mal havera em que um rapaz
casado, estando na cidade e tendo de fazer
horas, em vez de ir beber nos bars^ vd a um
cinema? Nenhum. Mas esse rapaz, ao chegar
a casa, nao pode dizer a esposa que esteve
num cinema, porque ella chorard logo : «Sem
mim ! » E suppora horrores do marido . . . Por
isso digo : todo trabalho que as maes t^m,
quando somos pequenos, para nos fazerem
amar a verdade, e todo destruido pela que
tem de ser a mae dos nossos filhos. Mentimos,
porque ellas o exigem ...
Odio de raga
O estudante Jose Basilio Junior, filho de
modesto guarda-freio da E. F. Central do
Brasil, alvejou com um tiro de carabina, cer-
teiro e mortal, ao joven Rosendo Pereira de
Figueiredo, rapaz honesto e trabalhador, func-
cionario dos Telegraphos. Rosendo era noivo
da senhorita Lucia, irma do assassino . Este
detestava o futuro cunhado (a quern a irma
idolatrava) por ter elle uma nodoa impossivel
de apagar-se : era mulato ! Ora ahi estd um
crime estupido e inedito no Brasil. Pelo me-
nos, desde que me entendo por gente, ainda
nao ouvi falar de coisa semelhante : um estu-
dante matar o futuro marido de sua irma, so
porque elle teve a desgra9a de nascer mulato
numa terra em que raros nao o serao . . . Esse
assassino, tao cioso da pouco provavel pureza
de seu sangue, devia ter considerado uma hy-
pothese : si os mulatos resolvessem cagar os
192 VERDADES INDISCRETAS
brancos,como elle fez com seu future cunhado,
em pouco tempo nao haveria no Brasil uma
s6 pessoa que podesse apresentar certidao de
pelle alva ; porque os branco no Brasil estao
em minoria. Eis ahi um assassino mais aris-
tocratico do que D. Pedro II. E' conhecido o
caso de Andre Rebougas num baile daCorte.
Achava-se o illustre Rebougas a um canto do
vasto salao do Pago Imperial, onde era fre-
quentemente recebido pelosoberano e todaa
sua Augusta Familia. Achava-se, pois, Re-
bougas a um canto do salao, insulado, sem
achar uma dama que Ihe quizesse dar a honra
de uma valsa, porque elle era mulato, quasi
preto . Parece que a noticia desse desprezo
chegou aos ouvidos do sr. D . Pedro II ; seja
como for, dahi a pouco Sua Magestade atra-
vessava o salao, trazendo pelo brago a S . A . I.
a Sr^ D. Izabel. com quem Rebougas dansou
a primeira contra-dansa, e depois nao dansou
com mais ninguem, pois, tendo dansado com
a sua futura soberana,era evidente nao poder,
depois disso, descer a dansar com qualquer
baroneza, ou com qualquer condessa. Era
assim que o imperante sabia desfazer precon-
ceitos de cor — consentindo em ver publica-
mente pelo brago de ummestigo illustre a sua
Filha, a unica fidalga authentica do Imperio,
cuja arv'ore genealogica podia ser acompa-
ODIO DE RACpA . . . 193
nhada numa concatena9ao de nove seculos
ininterruptos de existencia historica. Era pre-
cise que estivessemos em Republica para que
o filho de um guarda-freio matasseum rapaz
por ser mesti90 ! Como si a mesti9agem nao
estivesse tambem, e em larga eseala, entre os
brancos, como dizia Luiz da Gama :
B6des ha de toda a casta,
Pois que a especie e mui vasta ;
B6des brancos, b6des pretos,
Baios, pampas e malhados :
B6des ricos, negociantes,
E tambem alguns tratantes . . .
Ora assim sendo, o melhor e seguir o
conselho do mesmo poeta, quando manda
cessar a matinada «porque tudo e bodar-
rada ! »
13
Suicidios
O caso foi simples. Em Sete Lagdas (Mi-
nas), diz o telegramma, um mogo gostava de
uma moga, que Ihe correspondia ao affecto .
O irmao della, porem, n5o quiz consentir no
casamento. O rapaz, desvairado, bebeu ve-
neno e morreu. Em Minas ainda e assim que
se resolvem casos de amores infelizes. Serd,
porem, essa a melhor maneira de resolvel-os?
Parece que nao. O suicidio, em circumstancia
como essa, e inutil. Si a mo9a queria casar-se
com elle, o modo mais simples de dirimir as
difficuldades seria raptal-a e leval-a d presen9a
do juiz de paz, como la dizem, ou do pretor,
como se diz por ca. Si ella nao o amava, ain-
da havia outros caminhos a seguir : elle podia,
por exemplo, erguer as maos para o ceo, em
acgao de gramas, por ter querido enfeudar a
sua liberdade a alguem, e esse alguem o ter
deixado livre . . . Podia tambem procurar o
196 VERDADES INDISCRETAS
amor de outra mo^a. Nao ha antidote mais
efficaz para curar um homem do veneno de
uma mulher como o veneno de outra mulher.
E' mais ou menos o que se poderia chamar
«curar a dentada da cadella com o pello da
propria cadella. » Males de amor curam-se
com outro amor. A Natureza deu acada mu-
lher o odor di femina, que e differente em
cada uma ; de sorte que o perfume de Maria
nos faz esquecer facilmente o perfume de
Zulmira, a nao ser que o amante, o marido e
o namorado sejam como o asno, que se acos-
tuma a receber a ra<;ao numa baia e nao pro-
cura outra. O homem que nSo se apega a mu-
lher alguma nao e voluvel, nem inconstante :
6 simplesmente sensato e amigo de si mesmo.
E si n6s mesmos nao nos dispuzermos a ser
nossos amigos, difficilmente encontraremos
quem o seja. . .
O feminismo periga
A continuarem as coisas como vao, o fe-
minismo, pelo menos no Brasil, nao trium-
phara tao cedo. Eu sempre fui contrario a in-
tromissao das mulheres na vida publica. Uma
mulher politica e um estado intermedio entre
o homem e a mulher, que nao se compre-
hende. E' mulher, por fatalidade de gera^ao ;
homem, por extensao de privjlegios politicos;
eternamente creanga, pelas attitudes ; em re-
sumo — um ente hybrido, composto, deriva-
do, de estylo composito, trazendo em si peda-
gos de varios entes e nao sendo nenhum defi-
nidamente. Mulher que exergadireitos politi-
cos, nSo sendo rainha, tambem nao e ente
humano : e um estado de consciencia corres-
pondente : a perplexidade . . .
Em todo o caso, momentos houve em
que me senti mais ou menos feminista: era
quando eu considerava um pouco na desho-
198 VERDADES INDISCRBTAS
nestidade masculina, em materia de dinheiro.
Innegavelmente, as mulheres sao mais escru-
pulosas em questoes de dinheiros alheios. Ge-
ralmente, pensava eu, os homens roubam
para as mulheres. Ora, no dia em que collo-
carmos as mulheres a frente dos negocios
financeiros do Estado, ja nao havera roubos,
porque uma mae de familia, que seja por
exemplo, ministra da Fazenda, nao roubara
para dar chapeos a uma prostituta — o que
bem poderia acontecer si fosse seu marido o
ministro. Suppunha eu ter achado com isso a
formula para acabar com os peculatos !
Vae d'ahi, comecei a observar o proce-
dimento das mulheres que estao at^sta de
repartigoes por onde corre dinheiro. Vejo, en-
tretanto, que o peculato continiia a existir.
Oh ! longe de mim dizer que todas as mulhe-
res sejam eguaes, pelo menos em questoes
de furto; mas a verdade e que estao sen do
muito mais frequentes do que se esperava os
casos de desfalques em agendas postaes diri-
gidas por senhoras. A policia anda por ahi ds
voltas com alguns nao so aqui como no inte-
rior.
D'onde eu concluo que a entrada das
mulheres para a politica e para a administra-
^ao do paiz, alem de trazer graves damnos a
familia, nao offerece vantagem alguma i. coisa
O FBMINISMO PBRIGA. . . 199
publica. Os vicios continuarao a ser os mes-
mos. Ora, uma vez que assim e, fa9amol-as
voltar tranquillamente ao lar e deixemo-nos
<ie innovagoes. Collocar as mulheres no logar
<ios homens, para que ellas procedam exacta-
anente como os homens, nao vale a pena. . .
Pacifism
A morte do feld-marechal von Moltke faz
pensar no paradox© que representara a nossa
epoca para as epocas futuras, si algum dia vin-
garem as id^as pacifistas. Ainda ha quern
acredite no ideal pacifista. O sr. Teixeira
Mendes, por exemplo, quando escreve assuas
costumeiras cincoenta columnas do Jornal do
Commercio, nao se esquece de affirmar que o
periodo guerreiro passou, tendo terminado
definitivamente na batalha de Lepantho ! R
mais, que a humanidade caminha a passos de
gigante para a realisagao dos ideaes positi-
vistas, um dos quaes e a paz! Ainda ha, pois,
quern acredite nos ideaes pacifistas... Ora si
vingarem esses ideaes, em epoca de futura
muito remoto, a posteridade deve fazer de nos
uma idea muito approximada da que fazemos
nos outros dos nossos antepassados das eras
quasi primitivas. Que barbaros, que selvagens,.
esses avoengos !
2Q2 VSRDADBS INDISCRBTAS
Mas o melhor e nao fallar mal dos nossos
ancestraes. Todas as biographias do conde de
Moltke, hoje publicadas, trazem esta phrase:
(fFoi commandante da Escola de Guerra.)) Jd
pensaram na monstruosidade que representa
isto — Commandante da Escola de Guerra f
Uma escola de guerra e simplesmente um es-
tabelecimento em que se recolhem durante
alguns annos centenas de rapazes das me-
Ihores familias do seu paiz para aprenderem
OS melhores processos de matar muita gente,
de incendiar muitas cidades, de devastar mui-
tas regioes . . . E ha um cidadao que e no-
meado commandant^ideste estabelecimento,
isto e, um cidadao que e mestre na arte de
matar, incendiar e devastar !
Agora pergunto eu: quaes os selvagens?
Os nossos antepassados, que se guerreavam
por instincto, ou n6s que temos ate escolas de
guerra?
Decididamente estamos ainda muito lon-
ge do ideal positivista. Emquanto ninguem
sentir horror ao ouvir fallar de uma escola de
guerra, emquanto acharmos muito natural que
um homem seja « commandante da Escola de
Guerra 0, estara muito distante de nos o aper-
fei9oamento que Augusto Comte previu para
a humanidade. . .
A policia e espiritismo
Os homens eram espiritistas e recebiam
na sua casa alguns mentecaptos para os cura-
rem, isto e, mentecaptos, em calao espiritico,
chamam-se obse dados ...
Os espiritas, pois, recebiam na sua casa
sujeitos obsedados para Ihes curar a obsessao
mediante mensalidade que variava entre cem
e trezentos mil reis. A policia veio a saber que
OS taes obsedados eram espancados pelos es-
piritas em nome das mais altas e sublimes
doutrinas de Allan-Kardec e Leon Denis . A
policia o soube, foi a casa dos homens que
lidam com espiritos e levou tudo para a ca-
deia. Agora gritam que o chefe foi violento .
Eu, por^m, te pergunto leitor, si fosses chefe
de policia e nao fosses espirita, que farias ?
Serias violento ou nao ?
Quanto a mim, nao vejo outra maneira
de combater o espiritismo sinao pela violen-
204 VERDADES INDISCRETAS
cia. E' o systema geralmente adoptado para
esmagar seitas religiosas, que afinal acabam
vencendo os seus pretendidos vencedores.
Com o christianismo foi assim. Assim tambem
com o islamismo e com o judaismo durante
toda a Edade Media — o que nao impediu o
islamismo e o judaismo de estarem ahi vivi-
dos e fortes . A violencia e, pois, o unico
meio, alias innocuo, de perseguir seitas reli-
giosas. O roubo, o assassinato, o lenocinio e
outros crimes communs podem ser persegui-
dos normalmente, dentro daspresilhas do Co-
digo. Crimes politicos e crimes religiosos, nao.
Exigem violencia, porque os seus asseclas
agem directamente sobre a consciencia das
multid5es .
Demais, a violencia tem de ser applicada
aqui no Brasil todas as vezes que se quizer
fazer qualquer coisa util; porque neste paiz
nao ha apenas, como^m outros, mil chica-
nas para burlar as leis; ha tambem mil leis
que ajudam a burlar as outras. Querem um
exemplo.'* O Codigo Penal pune a pratica do
espiritismo, como a da feiti^aria: a Constitui-
9ao, porem, garante a liberdade profissional .
De sorte que, si um juiz prender um espirita
de accordo com o Codigo, outro juiz mandard
soltal-o de accordo com o Pacto. E ainda per
cimavird osr. Teixeira Mendes com um ar-
A POWCIA K O ESPIRITISMO 205
tigo de 420 tiras, pugnando «pelos supremos
direitos da Humanidado) e bombardeando
toda a gente com terrificas cita9oes de Au-
gust© Comte, a favor do espiritismo como
livre expressao do pensamento, oriunda da
aanarchia mental e moral do Occidente...
Lopes Trov&a
Noticiam largamente os jornaes o anni-
versario do velho propagandista Lopes Tro-
vao, que completa setenta annos como
se fizesse apenas quarenta ou quarenta e cinco.
Boa seiva, a de outros tempos. Lopes Trovao 6
um dos paes da Republica, tern setenta annos
e, apezar disso, esta mogo. A sua filhatem ape-
nas vinte e sete annos e . . . esta decrepita .
E' que Lopes Trovao, como todos os de sua
geragao, teve um ideal, e nada mais tonifi-
cante do que um ideal, seja qual f6r. Sua fi-
Iha, pelo contrario, materialisou-se, bestificou-
se em todas as farras, em todas as esbornias
de que e capaz uma filha do povo ...
Entrevistado pela Gazeta, disse Lopes
Trovao que continua a ter fe na Republica,
apezar de nao crer nos homens . . . Quern
diria que este livre-pensador, este atheu dos
quatro costados (atheu por nuncater vista
208 VERDADBS INDISCRETAS
Deus. . .) fosse capaz 6s,fe do carvoeiro em
se tratando da Republica?. . . Porque Lopes
Trovao estd no mesmo estado de espirito do
catholico que, apezar de conhecer a fraqueza
dos padres, continua a ter f^ na missa, nos sa-
cramentos, em toda a Religiao, emfim . « A
Religiao e divina, dizem elles ; os homens e
que sao fracos ». Vem Lopes Trovao com o
mesmo candido argumento e nos affirma : a A
Republica e b6a ; os homens e que nao pres-
tam ...» Fetichismo, supersti9ao de ambos
os lados . . . Ainda os catholicos tem um sub-
terfugio admiravel, quando proclamam a di-
vindade da sua religiao. Lopes Trovao, que
nao admitte a divindade, affirma: « A Repu-
blica e humana, por ser filha dos homens ;
ora OS homens nao prestam ; logo a Republica
e b6aU Como se ve, o syllogismo esta erra-
do, por ser a conclusao contraria is premissas.
Como corrigil-o? Assim: a A Republica e fi-
lha desses homens; ora esses homens sao
maus; logo a Republica e ma» . Porque ?
Porque o effeito e semelhante a causa. Mala
gallina, malum ovum. . .
No cafe
Jd bem tarde da noite, entro num cafe .
Concorrencia heteroclita: motoristas, nocti-
vagos, rep6rteres em disponibilidade, proxe-
netas com um vago ar de apaches de cinema,
e, ao fundo, tres raparigas magrellas, pallidas,
de olheiras, tres Mimis anemicas como a par-
titura da Bohemia.
A uma das mesas esta um rapazola fran-
zinote, dezoito annos presumiveis, solitario,
sorvendo um refresco. Nisto entra no caf^
outro rapazola, d'ares mais sadios e apparen-
tando a mesma edade. Olha o que esta assen-
tado, approxima-se cautelosamente e, colhen-
do-o pelas costas, colloca-lhe as maos sobre
OS olhos, para que o outro adivinhe quem e.
O aggredido forceja por tirar dos olhos a im-
prevista venda, mas o assaltante leva a me-
Ihor. Durante alguns minutos, brincam, ate
que o aggredido, conseguindo desvencilhar-se,
14
210 VBRDADES INDISCRBTAS
reconhece, a sorrir, o seu assaltante, que se
abanca a seu lado, depois de abra9al-o. Con-
versam, riem, bebem. Quern paga a nota e a
outro, isto ^, o primitivo, o aggredido.
Quantas vezes, no correr da vida, um
delles tera de vendar os olhos ao outro ! Um
dia, talvez esse Undo ephebo aggressive, de-
pois de vendar moralmente os olhos do seu
amigo, beije nos labios e ame a esposa delle \
E continuarao a ser amigos ; e continuarao a
assentar-se a mesma mesa; e continuarao a
sorrir-se, e o mundo sorrira tambem ! E sera
sempre o outro, o aggredido, o tranquillo,.
que pagara as despesas? Talvez, nao. Dessa
feita o pagante talvez seja o aggressor. . .
Dois bons amigos
Nao deixemos passar sem commentario
enternecido o caso do soldado de cavallaria
que, antes de morrer, escreveu disposi96es
ultimas a respeito do seu cavallo. Chamava-se
Gonzaga, dizem os jornaes, e falleceu hacerca
de quatro dias no Hospital Central do Exer-
cito. Tinha vinte e um annos de praga e ha
doze annos era acompanhado porum cavallo,
por quern tinha amizade, mas amizade verda-
deira. Sentindo approximar-se a morte, o ve-
Iho Gonzaga pedio papel e escreveu ao com-
mandante do seu esquadrao: «Meu bondoso
capitao — O meu unico desejo e que, depois
da minha morte, o cavallo da minha montada
seja entregue somente a uma pra9a que d6 a
elle o mesmo tratamento que eu Ihe dei em
vida.D E' tao bello isto, que a gente chega a
nao acreditar na veracidade das noticias que
o divulgaram. Esta sensibilidade de um velho
soldado, que antes de morrer declara que seu
212 VERDADES INDISCRETAS
wunico desejoB e que seu cavallo e amigo seja
bem tratado emquanto viver, esta sensibili-
dade espanta a quern vive no meio de uma
sociedade tao feroz como a nossa. Aindaha
poucos dias, um tenente deu tiros de revolver
na sua mulher, porque verificou ser atraigoado
por ella. Que contraste entre a mulher e o
cavallo! Emquanto o official, sentindo-se tra-
hido, baleava sua companheira de todos os
dias, a que compartilhava a sua mesa e o seu
leito, a que usava o seu nome, o soldado,
quasi na agonia, pensava : «Meu pobre ca-
vallo, tao bom! Que serd delle quando eu
morrer?» E nao resistiu ao tormento de pen-
sar que seu amigo podesse ser maltratado al-
gum dia. E escreveu ao capitao as poucas li-
nhas publicadas, simples como a sinceridade,
commovedoras como a esmola dada por uma
creanga . . . Ah ! cavallo que conseguiste con-
quistar todo o affecto do teu rude e leal se-
nhor! Nobre animal, quantos homens te
invejarSo hoje? Entre tantos animaes, ditos
intellectivos, mas que parecem ter nascido
com garras na lingua e viboras no cora^ao,
que difficil e encontrar um como tu, um que
saiba ser amigo ! Vantage ns de ter nascido
quadrupede em vez de bipede, e de nao ter
em si esse quid mysterioso e trai9oeiro que e
a alma humana . . .
Casadas e soiteiras
Com o sr. Prefeito e assim: preso por
ter cao, preso por nao ter cao , Ha tempos
constou que S. Ex. pretendia afastar do pro-
fessorado da Escola Normal os rapazes sol-
teiros. Parece, porem, que essa medida nao
se effectivou por antipathica. Vem constando
agora que o governador do Districto pretende
afastar do ensino primario as senhoras casa-
das! Por esta ninguem esperava. Sob o as-
pecto pedagogico, talvez uma casada seja mais
idonea para ensinar as crian9as do que uma
solteira ; a primeira — suppoe-se pelo menos
— )^ tem, como se diz, o «juizo assentado» ; a
segunda ainda anda com a cabega no ar, em
busca de quem realise o seu destino . .
Ninguem acredita que o sr. Prefeito
queira levar por deante tao extravagantes in-
tengoes; mas, si por ventura S. Ex. quizesse
realmente executar o que consta, seria em
214 VERDADKS INDISCRBTAS
parte um santo e em parte um demonio, um
mixto de Santo Antonio e Lucifer . Aquelle
santo 6y como se sabe, o grande protector das
solteiras; ora, o Prefeito, favorecendo as sol-
teiras com a preferencia para os logares de
professoras, teria certos vislumbres de santi-
dade, certos tragos de semelhanga psycholo-
gica com o santo ; mas — ao mesmo tempo
que Ihes dava emprego, prohibia-lhes convo-
lare ad nupcias — o que seria positivamente
diabolico, tantalico . . . O resultado de tudo
isso e que S. Ex. ficaria de mal com as casa-
das e com as solteiras: com as casadas, por
fties tirar o pao, alem do divertimento de en-
sinar a petizes; com as solteiras, por Ihes dar
o pao e prohibir-lhes o amor. Ora, nao s6 de
pao vive uma mulher, quando e m69a . . . Do
que tudo se conclue que S. Ex., ponderando
estas e outras razoes, deixara as professoras
como estao. E para terminar com uma nota
de perfeita imparci alidade, declaro que nao
sou marido de professora nem candidate ane-
nhuma. . .
A desvantagem do nome.
Sophia Klein e tida como judia, por se
chamar Sophia e fallar polaco. Pelo nome
Klein deve ser judia allema. Uma mulher de
raga hebraica, chamada Sophia que falla po-
laco e teve pensao na rua do Cattete, anda
com um pe na rua da Amargura e outro napo-
licia. No Brasil uma mulher estrangeira nunca
deve acudir pelo nome de Sara, Ruth, Rachel e
outrasdenominagoesbiblicas. Si uma mulher
usa de taes nomes e carrega nos rr e troca s
por^, pronunciando, por exemplo, zympa-
thico em vez de sympathico, p6de ser uma
santa, que a santidade da sua vida nao a im-
pedird de ir a policia de vez em quando pa-
lestrar amistosamente com o commissario de
dia. A nossa maneira de encarar superficial-
mente as coisas costuma levar-nos a concJu-
soes singulares. A franceza talvez seja a me-
ihor mulher do mundo, nao s6 como gra^a e
216 VERDADES INDISCRBTAS
vivacidade de espirito, mas ainda como since-
ridade, lealdade para com o homem a quern
ama, e todauma collecgao de pequenas minu-
cias d'alma que nao podem deixar de seduzir
um homem civilisado e intelligente. Entre-
tanto, como geralmente ao Brasil aportam,
com escala por Buenos Ayres, francezas des-
tinadas ao corte, ficamos nos a pensar queto-
das sao eguaes. Desorteque, quando se diz
— Vamos ver as francezas — ja se sabe de
que se trata. Em S. Paulo, na parte que limita
com Minas, quando se deseja fazer uma par-
tida de alegria, costuma-se dizer, segundo me
informou um amigo : — Vamos ver as minei-
ras. Entretanto, sabe-o toda a gente, si ha
no Brasil mulher de costumes rigidos, e indu-
bitavelmente a mineira. As excepgoes s6 po-
dem servirparaconfirmararegrageral. Assim
tambem, quando se diz, de uma estrangeira,
que e russa, polaca, ou hungara, ja todos pis-
cam OS olhos com malicia. Si Santa Edwiges,
rainha da Polonia, e sua sobrinha Santa Izabel
da Hungria viessem ao Brasil, e fallassem car-
regando nos rr e confundindo o masculino
com o feminino, ficariam logo sob a vigilan-
cia da policia e da reportagem. O mesmo se
del com individuos cujos nomes terminem em
off, insky, owsky e iesky. Si o princepe Lvofif
e o sr. Kerensky tentassem desembarcar no
A DESVANTAGEM DO NOME... 2l7
Rio, sem apresenta96es diplomaticas, talvez a
Policia Maritima Ihes embargasse o passo im-
pressionada pela terminagao dos seus appelli-
dos. Si o desejo de rir operasse milagres, eu
resuscitaria Sobiesky e Kosciusko e os faria
vir incognito 2iO Rio de Janeiro. Aqui chega-
dos, o sub-inspector da Policia Maritima iria a
bordo do seu navio e, depois de sapiente-
mente Ihes examinar os papeis, entabolaria
com elles o seguinte dialogo :
— Seu nome ?
— Joao Sobiesky.
— Polaco ?
— Sim, senhor.
— Sua profissao ?
— Homem de Estado, general, rei da
Polonia em disponibilidade.
— Hein?
— Sim, senhor! Fui eu que salvei a ci-
viHsa9ao christa, rechassando os turcos e os
tartaros.
— Qual ! Voce o que e e um bom maxi^
malista. E o senhor ahi como se chama ?
— Thomaz Kosciusko.
— Kosciusko ! Que nome ! Sua profis-
sao?
— General e patriota. Fui eu que, coni
4.000 polacos, venci 20.000 russos em Zie-
len^a.
218 VERDADES INDISCRETAS
— Ora adeus! Seu commandante, metta
estes dois proxenetas num camarote com sen-
tinella i. vista.
Sobiesky e Kosciusko podiam protestar
quanto quizessem. O homem da Policia Ma-
ritima permaneceria inabalavel na sua resolu-
^ao. E quando Ihe pedissem os motivos por
que vedava o desembarque a esses dois gran-
des homens, elle responderia convictamente:
— Desses tenho eu visto muitos aqui .
Basta reparar-lhes nos nomes. Dm sujeito
chamado Sobiesky ! Isso nao pode deixar de
ser um explorador de escravas brancas . . .
Foi por causa do nome que Sophia Klein
se tornou suspeita. Os jornaes tern tratado do
seu caso, que e simples. Sophia montou uma
pensao na avenida Atlantica. Para dar hospe-
dagem a familias distinctas. O seu processo
de adquirir lucros era um pouco violento,
posto que, na essencia, nao muito diverso do
geralmente adoptado pelas proprietarias de
pensoes familiares, Ella comegou per nao pa-
gar os impostos devidos aoMunicipio. Depois
tomou como norma commercial a seguinte :
recebida adiantadamente, de cada pensionista,
a paga correspondente ao mez, fazia tudo
quanto podia para desgostal-o, afim de que
elle se retirasse antes de vencido o mez ; o
seu lucro consistia em nao restituir a differen-
A DESVANTAGEM DO NOME. . . 219
9a ao prejudicado . Saindo um pensionista,
entrava outro que, depois de quasi enlouque-
cer com o ruido e o mau passadio da pensao,
por sua vez tambem se retirava, deixando la
com a Klein o pagamento integral da mensa-
lidade. Succedeu, entretanto, ir morar na
pensao de Sophia uma senhora franceza, ca-
sada com um inglez, dizem uns, com um alle-
mao, dizem outros. Sophia recebeu adiantado
o pagamento relativo a um mez e deu inicio a
sua offensiva habitual: ruido, carnecrua, falta
de asseio nos aposentos, etc., etc.. Como se
tratava de uma franceza, Sophia adoptou ain-
da outros methodos tacticos: incumbiu alguns
polacos de fallar mal da Franga na presen9a
da pensionista. Ora, uma franceza permitte e
perdoatudo, menos desconsiderar a Franga.
E' exactamente um dos defeitos das francezas:
serem francezas demais. Pode a franceza estar
a noite, no meio de rapazes, bebendo e tro-
^ando; ninguem ousara maldizer da Franga
na sua presenga, sem que ella immediatamente
tome ares de grande dama para dizer, fazendo
rolar com superioridade os rr na garganta:
— Oh! on voit bien que vous ne conais-
sez pas la Frrance, Monsieur/
Assim que, estando uma tarde os pola-
cos a dizer que a Franga nao tinha vencido a
Allemanha, a franceza protestou; e desse pro-
220 VERDADES INDISCRETAS
testo patriotico nasceu urn conflicto internacio-
nal em que a Polonia — deuses do Olympo ! —
castigou a Fran9a a murra9as! A franceza
operou um recuo estrategico e, nao podendo
ainda appellar para a Liga das NagSes, foi
queixar-se a policia. Aqui entrou em campo
areportagem e descobrio coisas phenome-
naes a respeito de Sophia Klein. Entre ou-
tras coisas, desvendara elles :
que Sophia teve uma pensao na rua do
Cattete;
que Sophia nao pagou o aluguel da casa;
que Sophia caloteou o padeiro, o ven-
deiro e o a90ugueiro.
Ora, pensando no caso, nao posso tra-
tar tao severamente a Sophia. Ella recebia
OS pagamentos adiantado e depois desgos-
tava OS hospedes. Mas isso e commum
a todas as donas de pensao. Apenas So-
phia agiu de modo directo, ao passo que as
outras donas de pensao agem de modo in-
directo, tendo um cao que ladra a noite, mo-
9asque estudam piano pela manhan, crian9as
muito galantes que tocam cornetins, cavalhei-
ros que cantam arias da Tosca durante o ba-
nho, etc., etc.. Alem do mais, Sophia Klein
tem um titulo de benemerencia : logrou o pa-
deiro, o quitandeiro, o vendeiro e o a90u-
gueiro. Esta senhora, apezar de estrange!-
k DESVANTAGEM DO NOME. . . 221
ra, estd-me parecendo nacionalista. Conse-
guiu uma coisa que ate agora so tern sido
possivel a intendentes municipaes e senado-
res da Republica ; nao pagar o devido ao
agougueiro e ao vendeiro. E', pois, uma crea-
tura patriotica, que contra si s6 tern duas coi-
sas : o nome de judia e muitos rr fortes na
garganta. Si, em vez de carregar nos rr e
chamar-se Klein, fallasse com rr brandos e se
chamasse Dona Maria Sampaio, nao teria
tanta gente a gritar contra ella . . .
Agitando um pello!
O Prefeito nao encontrando homem que
se aventurasse a dirigir o pandemonio da Es-
cola Normal (tanto e estafante lidar com mu-
Iheres!) resolveu appellar para uma senhora
a quern acaba de nomear para exercer o cargo
de directora daquella casa. E' de esperar que
dagora em deante a Escola entre nos eixos ;
e que, brevemente, as meninas tenham sau-
dades dos directores barbados . . .
Individualmente, nadatenho que dizer a
respeito da senhora nomeada directora. Mas —
e com todas as cautelas possiveis — e mulher.
Ora, segundo observa96es que tenho feito, o
ente mais intolerante que ha para com uma
mulher.. . e outra mulher. Pode ser uma santa :
na presenga de outra santa, mostra logo os
dentes. Nao e por mal, nao ; e por instinct© .
N6s, homens, mau grado os nossos defeitos,
somos mais ou menos bons uns para com os
AGITANDO UM PEI,I,0 ! 223
outros..Mulheres, tenho conhecido algumas
b6as para com os homens, que nem sempre o
merecem. Conhe^o patifes casados com san-
tas. Mas uma coisa que ainda nao vi : mu-
Iher que fosse integralmente b6a para com
outra mulher, a nao ser a mae para a filha, e
irman para com irman. Entre si, tem sem-
pre alguma coisa a allegar umas contra as ou-
tras. Jarepararam nellas, quando vao nos bon-
des, quando estao nos cinemas, nos theatros
e nas egrejas? Esta, por exemplo, uma mu-
lher num bonde. Si entra um homem e vem
assentar-se no mesmo banco, ella Ihe da pas-
sagem, geralmente sem mostras de gentileza,
mas tambem sem revelar ma vontade. Si e
uma mulher que entra, a outra franze o so-
brolho e nao afasta os joelhos, so paradifficul-
tar a entrada a intrusa. Esta — esbarra aqui,
pede licenga ali — assenta-se... Entao, ambas
se olham disfargadamente e, comonaopodem
manifestar-se o seu mutuo desprezo por ou-
tra forma, afastam uma da outra os sens vesti-
dos . . . Nao sei donde nasce essa animosi-
dade de gatas que ha entre ellas. O certo e
que nos, homens, si entramos num bonde,
saudamos uns aos outros com um toque de
mao na aba do chapeo — o que me induz a
crer que somos muito mais cortezes do que
224 VERDADBS INDISCRETA.S
ellas. Esta particularidade nao escapa as es-
trangeiras. Uma estrangeira me perguntava
ha tempos :
— Como se explica, que, recebendo os
rapazes e as raparigas a mesma educagao em
familia, sao neste paiz os rapazes tao delica-
dos e as mogas tao pouco gentis?
Eu respond! que, nao sendo muito forte
em materia de educa^ao domestica e de psy-
chologia feminina ignorava as razoes da
differen9a. Entretanto, nao pude negar o
facto. . .
Mas este capitulo nao tern por objectivo
deprimir asmulheres para exaltar os homens,
apezar de ser em mim inabalavel a convic9ao
da nossa absoluta superioridade physica, in-
tellectual e moral sobre ellas. O meu assum-
pto e outro.
Um jornal, noticiando o provimento
da alludida senhora no cargo de directo-
ra da Escola Normal, dizia que ella, es-
tando na Prefeitura, sorrio muito modesia,
cheia de symbolos, e agitando um pello que tra-
zia ao pescogo e cujas pontas Ihependiam sobre
OS hombros, numa grande cruz de ouro, numa
grande allusdo muda d miss do de director a da
Escala Normal.
Palavrade honra, li, reli, tentei interpre-
tar, reflect! e... nao sei si tere! entendido.
AOITANDO UM PEU.O I 225
Em primeiro logar, aquillo de uma se-
nhora estar ffcheiade symbolosjj. Que symbo-
los ? Onde? Como ? De que processes opttcos
se terd soccofrido o olho arguto do reporter
para descobrir na dama esses reconditos sym-
bolos ? Seriam naturalmente symbolos da in-
struc9ao. Mas,nesse caso, teriamos de adihittir
que a nova directora compareceu i. Prefeitura
•coberta de livrinhos, canetas, reguas, talvez
mesmo algumas palmatorias em miniatura,
apenas como recorda9ao historica, ji. se^ v^...
Depois vem o resto : agitando um pello
^ue trazia ao pescogo e cujas pontas pendiam
sobre os hombros numa grande cruzde onrOt
numa grande allusdo muda d missdo de dire-
' <tora da Escola Normal.
Nao p6de ser pello, matutei eu ; deve
ser pelle. Mas nao ! Nao podia ser pelle, por-
qu^, estando quente o dia, trazer pelle com
tal temperatura nao seria normal.
Seria polo ? Tambem nao. Porque, si
ella agitasse um polo, teria agitado tambem o
outro e n6s soffreriamos as consequencias do
terremoto . Depois, que me conste, ninguem
pode trazer um pok) ao pesco^o .
^ Seria pulo? Impossivel. Ninguem £^a
um pulo. O homem se agita, a Humanidade
o conduz,e elle piila : mas o agitado € ^le, ri§o
o pulo. Portanto, conclui cd commigo, o que a
IS
226 VKRDADES INDISCRKTAS
directora trazia ao pescogo era real me nte un»
peilo. Um reporter a cujo olhar penetrante nao
escaparam os symbolos, de certo nao se enga-
naria a proposito de um simples pello .
Ha comtudo nesse pello tres pontes im-
pressionantes :
1°) — A singularidade : porque, um peiio
so, isoiado, solus, totus el unus, em vez de.
mais de um ? Exquisito, profundamente ex-
quisito . . .
2°) — O seu tamanho,e consistencia : urn.
pello que, partindo do pesco90, caia sobre os
hombros, formando umagrande cruz de ouro I
Isto e mais mysterioso do que o IncognoscU
vel de Spencer. Fujamos. . .
3^ ) — Esse enorme e isoiado pello, que„
partindo do pescogo, caia sobre os hombros e
formava uma grande cruz de ouro, era, nada
mais, nada menos, que a uma grande allu«aa
muda a missao de directora da Escola Nor-
mal ! Mas que rela9ao podera haver entre a.
Escola Normal e um pello ?
Aqui, fatigado de tao profundo meditar».
deixeipender afronte pensativa e fiz, perante
Deus, um acto de renuncia. Renunciei a des-^
vendar o formidavel segredo . Em casos taes>
o melhor e ser a gente positivista, isto e, nao
procurar nem a causalidade nem a finalidade
dos phenomenos. Ha no Hospicio muitos sa-
AGITANDO UM PEI.I.O ! 227
bios que procuraram explicar problemas indu-
bitavelmente mais claros e, entretanto, li. es-
tao. E eu nao pretendo dar trabalhos ao dr.
Juliano Moreira e ao dr. Humberto Gotuzzo
— ambos muito bons camaradas, muito meus
amigos, mas . . . elles la e eu aqui . Nada de
pilherias. Nao convem abusar das circumvolu-
goes cerebraes . . .
Todavia — s6 para concluir — aquelle
pello deve servir de ligao aos barbados da Es-
cola Normal. Si o ex-director sr. Ignacio Ama-
ral, em vezde fazerumrelatorio,houvesse agi-
tado um pello dos seus varonis bigodes, teria
sido sempre respeitado. E o mesmo se en-
tenda do dr. Bricio Filho, cujos bigodes p6-
dem, por si s6s, fornecer pellos para os col-
choes de um regimento inteiro de infantaria .
Numa Exposigao deCILes
Chronica dedicada a todo o genero humanoy
inclusive os ccLchorros
Na minha qualidade de Rei da^Creagao
fui a exposigao de caes, organisada ha dias
passados, por outros reis da Crea^ao como eu.
lam OS caes chegando, cada qual puxado
pelo seu senhor, que o tinha por uma corren-
te. Chegavam, de bocca aberta e lingua a
mostra, e eram apresentados a certos ani-
maes de calgas e fraque, alguns ate de lune-
tas, OS quaes os examinavam, alisavam-lhes o
pello, collavam-lhes ao pesco90 uma etiqueta
e mandavam atal-os a postes fincados em ter-
renos divididos conforme a ra9a de cada um,
isto e, de cada um dos caes, nao dos juizes.
Havia varias bancadas, como, por exem-
plo, a bancada dos caes de pastor, a dos de Sao
Bernardo, a dos irlandezes, a dos dinamarque-
230 VBRDADES INDISCRRTAS
zes, a dos de guarda, a dos perdigueiros e ou-
tros, muitos delles pequeninos, felpudos, timi-
dos, cretinos e tremulos, raga que eu prefiro
designar pela denominagao generica de cdes
defemeas. Sao uns caesinhos parasitas, que pas-
sam todo o dia deitados sobre um tapete ou
ao regago da sua dona, rogando o seu focinho
pelo focinho della, lambendo-lhe as macs e
por Ventura outros sitios ...
La estavam, pois, os cSes reunidos em
assemblea, quando cheguei ; e, sendo rei del-
les, puz-me a olhal os com a mais irritante in-
solencia. Alguns estavam commodamente
deitados, calmos, langando olhares indifferen-
tes e preguigosos para os seus semelhantes.
Caes ricos, provavelmente. Ou talvez pobres,
mas pensadores, porque ser pensador e uma
das formas de disfargar a pobreza. . .
Outros, entretanto, agitavam-se, ladra-
vam, forcejavam por arrebentar as correntes,
uivavam, escarvavam a terra com as unhas,
babavam, mostravam a lingua e arreganhavam
OS dentes. . .
Homens e mulheres, quero dizer, deuses
e deusas, (porque para os caes n6s devemos
ser deuses) passavam impassiveis .
Creio que dos deuses fui eu o unico que
prestou attengao aos debates que se travavam
naquella assemblea de minusculos e grandes-
NUMA BXPOSI9X0 DE ClES 331
sissimos cachorros. E foi assim que pude ver
um sr. cachorro immenso, que estava deitado
sobre as patas dianteiras, felpudo e majestoso
<:omo um leao de Can ova, o qual devia ser o
presidente, porque, tendo outro cao ladrado
<ie certa forma, como quern dizia — Pela or-
dem ! — vi esse leal cao imponente ladrar de
outra, como quern dizia : Tern a palavra 710-
hre deputado !
Depois de ter co^ado uma orelha com
uma das patas trazeiras, comegou o orador de*
clarando que vinha protestar contra o empe-
nho. E' pelo empenho. dizia elle, que os
homens sao doutores, diplomatas, militares,
deputados, tudo quanto querem ser. Pelo
empenho muitos adquirem fortunas colos-
saes ; pelo empenho se casam com mulheres
bonitas, acom essas lindas mulheres que nos
beijam o focinho com deliciaU
Aqui o Cao-Presidente ladrou com certa
severidade e advertiu o orador de que a As-
semblea dos Caes nao podia permittir que no
seu seio se tratasse de assumptos escabrosos ;
si isso era commum entre homens, nao ficava
bem entre caes de b6as familias . . .
O orador, declarando submetter-se a sa-
bedoria da presidencia, continuou a ladrar
x:ontra o empenho e ganiu : que o empenho,
ja entrara tambem entre a nobre raga dos
232 VERDADES INDISCRETAS
caes; e, para a prova, chamava a attengao
dos seus collegas para um cao dinamarquez^
felpudo, de olhos nostalgicos, que estava de
lingua a mostra, perto de uma senhora alta
como Pallas Athenea, de fortes ancas asiati-
cas, de bra90S constrictores como as serpentes
de Lacoonte, de olhos tenebrosos como os
desesperos que nao tem fim. Aquelle cao, la-
drou o orador, nao tinha sido matriculado na
exposi^ao dentro do prazo legal ; chegara tar-
de e so f6ra admittido pelo empenho de certo
cavalheiro, intimo da tal senhora de olhos ne-
gros, o qual cavalheiro a apresentara a um dos
membros do jury, que se deixara logo envol-
ver pela treva espessa daquelles olhos fataesl
(Sensafdo).
Olhei para o cao dinamarquez, que alias
tanto podia ser cao dinamarquez como galgo
russo. E' a sorte dos caes protegidos da fortu-
na : serem sempre muito discutidos, mas, com
clareza, nuncadefinidos... O dinamarquez con-
tinuava tranquillamente ao lado da sua dama^
cujos labios me pareciam humidos como ma-
gans partidas por alfanges, insaciaveis como a
cubiga dos avarentos. Elle nem parecia ouvir
a accusa9ao do patriota seu semelhante. Todo
aquelle discurso Ihe era indifferente. O feliz^
animal tinha a divina impassibilidade de
NUMA EXPOSI9AO DE CAES 233
quern esta certo de ser, pelo menos nas appa-
rencias, o idolo de uma bella mulher.
O orador continuou a ganir: «Estamos
defraudados pela entrada subrepticia desse
e strange iro ...
Uivos — Nao apoiado ! E* filho de estran-
geiro, mas nasceu no Brasil!
O cdo orador — . . . desse estrangeiro
que penetrou neste recinto pela porta falsa
das protecgoes inconfessaveis ! Protesto, Sr.
Cao-Presidente, protesto contra a petulancia
desse intruso que, nao podendo concorrer
lealmente comnosco neste certamen, a que
nos trouxeram os deuses, nossos senhores,
serviu-se das saias de uma mulher para afron-
tar OS nossos brios !
Um ganido — Muito bem ! Tal individuo
nem parece cao : e antes um homem ! E' in-
digno de ostentar a colleira que nos distin-
gue !.. .
Grande tumulto. Cruzam-se uivos desen-
contrados. Violentos ladridos nas bancadas
dos caes dinamarquezes e galgos russos . O
sr. Cao-Presidente, de focinho ao vento, late
e pede attenyao . Os caes policiaes fitam as
orelhas e rosnam, mostrando as presas.
Vozes — Retire o latido ! O orador deve
retirar o latido !
O Cdo-Presidente — Attengao 1 Atten-
9ao ! Nao foi o orador que injuriou o nosso
234 VBRDADES INDISCRETAS
eminente collega dinamarquez. Foi um gani-
do differente que disse que o nosso collega
era um homem ! Quern ganiu por tal forma
descubra-se e retire essa expressao, que nao
e canina.
Um ganicio — Retire o latido. Entretan-
to, sr. Cao-Presidente, continuo de acc6rdo
com o orador que tao brilhahtemente vae la-
tindo em benefidio dos supremos interesses
da nossa ra9a !
Ganidos — Muito bem ! Muito bem ! Essa
attitude, sim, e digna de caes ! O contrario
seria proprio de homens !
O dinamarquez, como si tudo aquillo nao
fosse com elle, lambia a mao de sua senhora.
Bravo cao ! Devia ter grande influencia entre
OS seus semelhantes : injuriado publicamente ;
despertando essa tempestade de ataques vio-
lentos e de adhesoes fervorosas naquelle cer-
cado de arame, continuava olympicamente
impassivel, a lamber a mao da bella creatura,
a farejar Ihe os odores inebriantes, a rogar-se
pelas saias della ! Cao sublime ! Cao minis-
tro ! Cao estadista !
Com mais alguns latidos, nos quaes con-
clamavam, como clangores de buzinas de chi-
fre, coisas ladrejantes a respeito da cfraterni-
dade entre os caes» da whonestidade dos
governos)), e outros ladridos retumbantes, o
NUMA BXPOSI5X0 DB CAES 235
cao orador deu por findo o seu discurso, que
foi longo.
A maioria dos caes, entretanto, dormia,
ou dormitava, alguns enrodilhados, tendo o
focinho junto a cauda; outros, mais dignos,
tendo o focinho sobre as patas dianteiras,
cruzadas, abrindo e cerrando os olhos conges-
tionados pelo somno — e rosnando vagamen-
te. Atados aos seus moiroes e fartos de vi-
giar em vao, os caes policiaes resonavam. Os
Sao Bernardo, de bocca aberta, lingua a mos-
tra, babando, pareciam asphyxiar-se sob a
acgao bestificante do mormago intertropical ;
e, nos olhos amortecidos pelo somno e pela
fadiga, olhos que supplicavam a misericordia
de todos OS deuses vivos e mortos, reveland6
a saudade ancestral das neves alpinas , pare-
ciam trazer nas pupillas amortecidas o des-
gosto immenso de uma raga que, transplan-
tada para climas violentos, falhou, tornou-se
para sempre inutil e para sempre desgostosa
da propria inutilidade...
Afinal, vi que a reuniao dos caes tocava
a seu termo. Procurei sair. Sujeitos de lune-
tas passavam, dando o brago as mulheres e
conversando gravemente com as filhas. Uma
m69a, que ia com o pae (sujeito de p^ra gri-
salha e monoculo, que fallava aos requebros
com uma senhora loura) uma mdga levava ao
236 VERDADES INDISCRETAS
collo um toto, beijava-o e falava-lhe : Oh / le
beau toutou / Ok / le petit cheri I Mon amour,
mon petit ange / O caozinho, felpudo, civili-
sado e obsceno, lambia-lhe o focinho. Quasi a
porta da saida, vi ainda a senhora de olhos
negros que levava o dinamarquez pela cor-
rente e afagava-lhe a cabega, emquanto distra-
hidamente ouvia os galanteios trovejantes,
de um typo alto, gordo, pan9udo, obeso e
chato, de papada suina. touti90 de portuguez
rico, terno de fraque cinzento, cara de bezer-
ro manso e voz metallica, o qual pelos modos,
si nao era niinistro, devia ser millionario e se-
nador. E naquelle momento eu nao desejei
ser ministro, nem millionario, nem vendeiro
opulento, nem senador; invejei simplesmen-
te, humildemente. cynicamente, as venturas
secretas do cao dinamarquez . . .
Consideragoes actuaes
Para onde emigrastes, 6 grandes abne-
gagoes mudas do passado ?
— Nao emigraram. Morreram. Foram
mortaes pela nevrose da publicidade. Antes
de Guttenberg, partia um cavallelro para a Pa-
lestina, a conquistar o Santo Sepulcro. Tra-
vava combates com o Sarreceno ; partia lan-
9as ; embotava laminas de Toledo ; esfalfava
ginetes de Hespanha e murzeis inglezes ; des-
tro^ava esquadroes : aprisionava adais ; apu-
nhavai miramolins : violava harens ; apai-
xonava sultanas ; devastava terras de mou-
ros; degollava muezins; abatia minaretes:
punha cerco a cidades sagradas; escalava
muralhas ; humilhava o Crescente : erguia
bem alto a Cruz; e um bello dia, num retinir
barbaro de armaduras invictas e montantes
heroicos, entrava triumphante em Jerusalem ^
de guiao algado, ao som de pifaros, charame-
238 VERDADES INDISCRETAS
las e atabaques, com muitas gritas e tangeres
de guerra, que pareciam coisa temerosa, como
rezam os classicos . . .
Ora, tal paladino soffria todas essas agru-
ras por um ideal superior, por um ideal reli-
gioso que, apezar da sua intangibilidade, o
compensava largamente dos sacrificios que
houvesse de fazer ate que chegasse a ajoe-
Ihar-se deante do Santo Sepulcro, que a
mourisma depois viria reconquistar. . . Nin-
guem assistia aos seus combates. Nao havia
photographos nem operadores cinematogra-
phicos para fixar-lhe as attitudes, nem telegra-
ph© para dizer ao mundo que elle era valo-
roso, nem jornaes e re vistas para Ihe estampa-
rem o retrato. So havia o seu Ideal, o seu
Deus, o seu Rei, a sua Consciencia e a sua
Dama, que tambem estava longe, encerrada
na torre feudal de um castello inexpugnavel,
defendida por fossos, barbacans, ameias, bes-
teiros, catapultas e anoes. . . E o paladino
combatia. Victorioso, o seu Rei o fazia conde
ou duque, emquanto a sua amada Ihe abria os
bra90spara Ihe dar a recompensa mais arden-
temente appetecida. . . Si morria, como Or-
lando, OS trovadores o immortalisavam nas
cortes de amor . Era o dominio da vida inte*
rior em toda a sua esplendorosa belleza .
C0NSID^^90BS ACTUABS 239
Hoje, como o materialismo afasta Deus
das consciencias, e como, de seu lado, as da-
mas perderam o segredo de gerar e sobretudo
de educar paladinos, os homens se voltam
exclusivamente para o Reclamo. So reconhe-
cem uma dama que e a Publicidade. Observei
isto no principio da guerra europea. Qualquer
farroupilha que se offerecesse como voluntario
(marcharia realmente?), o primeiro cuidado
quetinhaera ir despedir-se dosjornaes, le van-
do ja o retratinho para sahir na folha do dia se-
guinte ou do mesmo dia, si possivel fosse . E
no diaseguintela vinhao retrato doparvajola,
centralisando uma entrevista de infallivel effi-
cacia nas prisoes de ventre...
Mas nao sao apenas os homens que tem.
a nevrose do reclamo , Sao as mulheres tam-
bem. Podera haver acto mais delicado do que
o casamento ? Collocando-nos acima de qual-
quer preconceito religioso, philosophico, litte-
rario, ou social, encaremos o casamento sob
o aspecto apenas da delicadeza masculina^
olhando-o atravez do nosso simples cavalhei-
rismo : podera haver coisa mais melindrosa do
que esse acto ? E visto que assim e, nao serd^
de bom gosto cercal-o de todos os resguar^
dos, de todas as discre96es ?
240 VERDADES INDISCRETAS
Entretanto o estardalha90 com que entre
nos se fazem os casamentos transformam em
buffoneriao acto mais serio da vida civil. Gar-
ros extravagantes, enfeitados de fi6res de la-
ranjeira e tirados por parelhas cheias de gui-
zos, campainhas, tintinabulos e chocalhos de
varia especie ; cocheiros visivelmente bugres
mas trajados a Luiz XV, guiando democrati-
cas parelhas, as quaes puxam carros em cujas
almofadas vao repimpados uns 16rpas enor-
mes, tendo ao lado boas maes de familia cujas
honestas banhas plebeas formam o mais vio-
lento contraste com os tricornes dos cochei-
ros, alugados para aquelle dia...
Si fosse so isso... Os nubentes nao se
contentam ja com o estardalhago carnavalesco
do cortejo chocalhante. Querem mais.Exigem
os photographos com as suas codaques «para
tirarem aspectos)) da ceremonia. Solicitam a
benevolencia das revistas illustradas para es-
tampar esses aspectos. Mais : alguns chamam a
casa um retratista em voga para photographal-
os em trajes nupciaes, agarradinhos e sorri-
dentes, com aquelle sorriso equivoco de quern,
logo mais, a noite, vae descobrir algum esca-
broso segredo... Todos temos visto dessesre-
tratos em ponto grande, expostos nasmontras
C0NSIDERA90ES ACTUAES 241
dos retratistas, o noivo de casaca, a noivacom
a sua grinalda de fl6res de laranjeira, enver-
gonhadas— pobres fl6res ! — de ouvir aos bas-
baques da rua os commentarios mais torpes.
Porque o casamento, quando e discrete, paira
em regioes altas ; mas quando desce dessas
regioes para se mostrar ao povileo, em poucos
minutos a alvura do vestido nupcial esta sal-
picada de lama, e a gravata branca do noivo
so se rehabilitaria perante as consciencias ho-
nestas, si se transformasse espontaneamente
numa boa corda de linho, munida de um no
corredio, para enforcal-o.
O casamento silencioso, em que os nu-
bentes so ougam o pulsar do proprio cora9ao,
que se furta a profanidades e ostentagoes,
ainda se tolera ; mas o casamento carnavalesco
em que se compraz o ruidoso mau gosto dos
rastacueros, devia ser capitulado nos mesmos
artigos do Codigo que punem os attentados d
moralidade publica.
* '
Outr'ora eram as viagens prazeres espi-
rituaes. So se atreviam a viajar os individuos
que alliassem a coragem tranquilla dos mari-
nheiros ao appetite delicado dos epicuristas
16
242 VSRDADES INDISCRBTAS
mentaes. O viajante atravessava oceanos ; sal-
tava de um para outro continente ; galgava
montanhas; descortinava horizontes; orava
nas basilicas; admirava os paineis nos mu-
seus ; contemplava os monumentos iilustres y
tinha extases deante das estatuas ; via e ou-
via nos theatros as celebridades em voga. K
quando regressava aos penates, era a esposa»
aos filhos e a limitado numero de amigos que
elle referia da sua viagem as peripecias mais
interessantes. Elle ma coisas durante a sua pe-
regrinagao. So ia fazer isso ; ver, para gozo do
seu espirito e para narrar maravilhas a esposa
durante os seroes honestos da sua casa.
Hoje e differente. Por pequena quantia
p6de qualquer sujeito viajar com a familia em
paquetes confortaveis. Annualmente zarpam
deste porto toneladas e toneladas de carne
humana que vae com a intengao de ser vista
em Paris. Por la estao elles, os nossos andari-
Ihos, mezes e mezes, sem conseguir penetrar
um iota da alma de Paris. Viram mulheres^
viram homens, viram cantarias e acharam es-
tupenda a torre Eiffel, ate onde grimparam,.
gragas aos seus instinctos de quadrumanos, e
de onde mandaram para o Brasil o inevitavel
postal: Meu amigo — Escrevo-te do alto da
torre Eiffel, etc ... »
Tenho conversado com innumeros turis-
CONSIDERApSBS ACTUAL 243
tas indigenas chegados de Paris e confesso
que.antes de conhecer qualquer delles, julgava
o cerebro humano menos impenetravel. Com
excepgao dos raros viajantes intellectuaes
que sabem ver sem necessitar de recorrer ao
Bedecker ou de pedir informa^oes a Agencia
Cook, todos OS brasileiros voltam de Paris en-
cantados. . . com a illumina9ao do Rio !
Lembra-me ter sido apresentado a dois
rapazes muito ricos, paulistas e bachareis na
forma da lei. Haviam chegado da Europa na-
quelles dias ; e, como eram bem parecidos e
endinlieirados, ficaram logo sendo a coquelu-
che das raparigas da pensao. De resto, bons
rapazes e muito amaveis. Mas diziam coisas
phantasticas a respeito de Paris. Uma noite^
apoz o jantar, tendo-se formado uma roda de
rapazes e m69as, os dois j ovens rica90s dis-
corriam acerca da Franga e principalmente das
francezas. A paginas tantas, disse um delles :
«0 que falta em Paris e limpeza. Nao ha hy-
giene nas ruas. E as casas sao horriveis. As
senhoras nao imaginam o que seja a avenida
da Opera : uma serie de casas antigas e en-
fuma9adas. Nao limpam as testadas dos edi-
ficios . . . Qual ! Nao ha nada como a nossa
avenida Rio Branco. Que bom gosto ! E os
nossos chales da avenida Atlantica ! Nao vi
nada em Paris que se parecesse com elles.
244 VERDADES INDISCRSTAS
Como tambem nem em Berlim, que e muito
mais limpa do que Paris, nem em Berlim vi
avenida que se parecesse com aavenida Pau-
lista ! »
No mesmo dia pedi as minhas contas e
no dia seguinte mudei de casa.
*
Mas nao e a torre Eirfel a unica victima
dos brasileiros. Alem dos inevitaveis pombos
de Veneza, ha no universo um sitio feito para
inspirar piedade : Nice. A guerra nos tem li-
vrado de, ao abrir alguma das nossas illustra-
^oes semanaes, encontrar o retrato de um
ahonrado negociante da nossa pra9a)), cerca-
do da sua numerosa prole, posturando num
jardim de Nice com a mesma physionomia
acarneirada e prolifica com que costuma dei-
xar-se retratar nos convescotes da ilha do Bom
Jesus. Bemdita guerra. . .
*
Que pena que eu nao seja o Doutor
Fausto ! Si Mephistopheles me apparecesse,
o que eu Ihe pediria era transformar-me em
intellectual francez, inglez, ou allemao, du-
rante um inverno, so para poder sentir o que
.deve sentir um francez, um inglez, ou um alle-
mao super-civilisado, quando o acaso o poe
em contacto com o turismo americano ...
O cabega de turco
( Carta ao dr. Chefe de Policta)
Exmo. Sr. — Venho, nestas linhas, pedir
a V. Ex. garantir a avelludada pelle de um
patricio nosso, actualmente amea9ado por
causa da sua mania de ser turco : o sr. dr. Joao
do Rio. Ha muitos annos entrou na cabe^a
deste estimavel compatriota a id^a de ser o
homem mais celebre do seu paiz e o chronista
mais bem relacionado no mundo inteiro.
Assim, jurou esmagar todos os outros chro-
nistas parisienses. Michel Georges Michel tira-
va-lhe o somno com osseus Pall-Mall-Paris,
Pall-Mall- Nice, Pall-Mall- Trouville, Pall-
Mall- Biarritz, &tc.]o2LO nao socegou emquanto
nao fez tambem um Pall- Mall- Rio, improvi-
sando-se Jose Antonio Jose. Declarada a
guerra, nao descansou Joao emquanto nao foi
a Europa entrevistar gente importante, entre-
246 VBRDADKS INDISCRKTAS
vistar to do o mundo. Amigo intimo de Enver-
Pachd, de Talaat-bey, de Djavid-Pachd e de
tantos outros proceres do Imperio Turco, nao
Ihe contentavam essas glorias stambulescas .
Creia V. Ex., sr. Chefe, que, jornalistas nos ou-
tros mais ou menos jecas-tatus, quando Joao
nos contava que tinha almogado em Andrino-
pla com o general Djemal-Pacha, todos nos
torciamos de inveja, da mais purainveja deste
mundo. Quando, porem, Joao nos dizia do
jantar que Ihe tinha offerecido em Constanti-
nopla o Sultao, seu padrinho de baptismo,
jantar depois do qual elle, Joao, foi apresen-
tado a kadine predilecta de Sua Magestade e
a mais de trezentas odaliscas : — turcas da Ana-
tolia, ariscas e leves ; arabes do Hedjaz, hu-
mildes na belleza da sua escravidao ; arme-
nias. flexuosas como gatas angoras ; georgia-
nas, espantadigas ; circassianas, cheias de no-
breza na suavidade dos olhos claros ; persas
morenas e finas que ao Commendador dos
Crentes havia mandado, como preito de ami-
zade. Sua Altezalsmail-Djezir-Khan ; humidas
e sensuaes egypcias de pelle trigueira, pre-
sente principesco do Khediva Abbas-Hilmy ;
e quando Joao nos dizia que, a sua passagem
pelo harem, entre eunuchos numidas, sub-
missos e mal encarados, essas escravas se
curvavam e se prostravam sobre tapetes do
O CABE9A DS TURCO 247
Afghanistan; e, de dentrodas suas largaspan-
talonas de s^da da India, que mal disfar^a-
vam, na sua hallucinante harmonia, as curvas
das ancas magnificas, murmuravam docemen-
te — Tezlim f Tezlim / Graga ! Gra9a ! — ah !
entao e que a nossa inveja explodia em pra-
gas de enthusiasmo e em uivos de admira9ao,
que pareciam nao mais ter fim. Certa vez, de-
pois de ouvir a Joao uma dessas portentosas
narrativas, nao me contive que nao rosnasse
de dentro da minha inveja e da fumaga do
meu charuto bahiano :
— Este Joao ainda acaba mahometano e
Grao-Vizir !
Comtudo, a vida tem suas surpresas,
como passo a referir a V. Ex.
Numa excursao que fiz pelo Hedjaz, em
companhia do Emir Faysal, estando nos na
nossa tenda uma tarde, perto das ruinas de
Palmyra, vimos chegar com grande e majes-
toso estrepito uma caravana pomposa, e, a
frente dessa caravana, Joao do Rio, encarapi-
tado, nao sei si num camello ou em si proprio.
O Emir manteve se discreto, grave no seu al-
bornoz branco, cofiando as admiraveis barbas
biblicas e fumando tranquillamente fumo persa
no seu magnifico narghile de boquilha de pra-
ta. Em volta de nos estendia-se a paizagem
melancholica : palmeiras resignadas d aridez
248 VERDADES INDISCRETAS
do campo desertico ; meditativos camellos e
nostalgicos dromedarios, alongando os pesco-
90s e dilatando as narinas, como se procuras-
sem com os focinhos o rumo em que ficava a
Terra da Promissao . . . Alguns beduinos, aco-
corados em tapetes, sorviam regaladamente
harak e, saudando com lentas e nobres reve-
rencias os que entravam, preguigosamente
iam fumando os seus longos galiun, na atti-
tude sacerdotal de quem meditasse versiculos
do Alcorao. Joao desceu do seu camello, que-
ro dizer, de si mesmo ; e, sorridente, esten-
deu a mao democratica ao Emir. Este, que
tinha visto as divisas turcas de Joao do Rio,
nao manifestou grande empenho em estender-
Ihe a dextra principesca. Dois guerre iros ara-
bes apalparam os alfanges, suppondo que
Joao quizesse provocar o Emir. Este, porem,
nao alterou a sua serenidade oriental. Vendo
eu que podia surgir de tudo aquillo um con-
flicto tremendo, disse em francez ao Emir que
Joao, em bora parecesse turco, nao o era. Era
apenas brasileiro, christao e ate academico.
Entao o Emir se levantou levemente, e gra-
vemente saudou a Joao, quasi sem retirar dos
labios a boquilha do seu narghile. Todavia^
convidei a Joao para comer alguma coisa com-
nosco. Em torno, os arabes se tinham aquie-
tado. O dispenseiro de Sua Alteza o Emir
O CABSgJi DB TDRCO 249
Faysal serviu-nos uma malga de laden, cuja
brancura espantou a Joao.
— Que e isso ? — perguntou elle, como
se visse pela primeira vez uma fructa tropicaL
Com a minha experiencia dos costumes
arabes, expliquei-Ihe que aquillo era uma sim-
ples coalhada, uma especie de coalhada bul-
gara. E Joao sorveu com delicia o seu laden .
Depois pedi a Sua Alteza houvesse por bem
mandar servir-nos um pouco de ^o&6s e ma-
kluta, perdizes guisadas com carneiro e legu-
mes, a que Joao fez honra bravamente e bem-
dizendo Allah no fundo do seu coragao.
— Admiravel ! — murmurava Joao, que,
no auge do enthusiasmo gastronomico, ia, por
engano, limpando a bocca na fimbria do al-
bornoz branco de Sua Alteza, suppondo usar
de um guardanapo.
— Tamaras! — exclamava elle. Havera
tamaras por aqui ? Eu sempre encontrei tama-
ras no Oriente. . .
Nao. Infelizmente nao havia tamaras e
era a primeira vez que Joao ia ao Oriente .
Mas, havia alguma coisa que Joao nao conhe-
cia e eu pedi para elle : ataief, pasteis doces
de nozes pisadas, envolvidas em capa detrigo,
sobre os quaes se derrama calda de assucar,
perfumada de hortelan, canella e mangerona,.
de suave sabor prophetic© ...
250 VBRDADBS INDISCRBTAS
Joao, encantado, jurava que no Rio, na
confeitaria Paschoal, aquelles pasteis fariam
furor; e, repetindo a dose, perguntava ao
Emir em portuguez :
— Porque e que os senhores aqui nao
mandam estas deliciosas coisas para o Itama-
raty ! Ah ! o Itamaraty . . . E' um tumulo . . .
E' a Arabia do Brasil . . .
Sua Alteza, por ventura nossa, nao en-
tendia o portuguez ; e eu, aproveitando a igno-
rancia delle e dos outros beduinos, garanti cy-
nicamente que Joao, na nossa lingua, agrade-
cia a Allah e louvava o Propheta! Ao que
Sua Alteza inclinou gravemente a fronte, em-
quanto os arabes circumdantes faziam o mes-
mo, cheios de respeito e de terror . . .
Terminada aquella refeigao, quiz eu co-
nhecer o sequito de Joao, todo elle composto
de beys e pachas que, com extranheza minha,
se conservavam a distancia respeitosa, comen-
do conservas europeas! So entao verifiquei,
nao sem espanto e gargalhadas, que os pachas
e beys de Joao eram simples empregados da
Agencia Cook — inglezes, italianos, france-
zes, allemaes e dois portuguezes que Ihe ser-
viam de interpretes.
— Mas, entao, Joao ! Que pachas occi-
dentaes sao estes?
O CABE5A DB TURCO 2Sl
— Ah ! Aqui entre n6s ... E' s6 para
dizer que estive no Oriente. , . Quern nao
fizerassim, vivendo no Brasil, 6 positivamente
cretino. O Oriente ! Mas afinal quern conhe-
ce o Oriente ? Ninguem ... O proprio Sao
Paulo, que viveu, morreu e ate nasceu em
Roma, nunca viu o Oriente. Os ultimos ho-
mens que viram o Oriente forem os reis ma-
^os!
— E nos, Joao, nos tambem, que aqui
estamos, com os diabos!
— Mas estamos sem ver . . . Voce pen-
sa que o Emir conhece o Oriente ? Nao co-
nhece. O Emir conhece a Europa, conhece
Paris, Londres, as unicas coisas que interessam
a homens intelligentes. Porque e que o Emir
nao se veste no Poole? E' um lindo homem...
Nunca mais vi Joao. D'ali nos separa-
mos, elle para a vastidao democratica do Occi-
dente, e eu, na comitiva de Sua Alteza, para
Thaief, Medina e Djebah, na ancia illustre e
inoffensiva de estudar religioes em cima de
camellos . . . Chegando, porem, ao Brasil, co-
mecei a notar que Joao conhecia mais o
Oriente do que eu e Sao Paulo, que Id estive-
252 VERDADBS INDISCRm'AS
mos tamto tempo, o Apostolo, pregando o
Evangelho, e eu, pobre peccador, estudando
affanosamente o que elle tinha pregado dois
mil annos antes. Mas, de tal maneira Joao fal-
lava da sua intimidade com pachas, beys e
effendis, que eu comecei a nutrir contra elle
uma dessas invejas surdas que sao capazes
de levar um homem a prisao. Depois Joao
foi a Buenos Ayres, yisitar Julio Roca ; foi
ao Chile, entrevistar as salitreiras ; foi a
Montevideo, meia hora; e nao tendo mais
onde ir, foi a Conferencia da Paz. Entrevistou
Venizelos ; conversou com o Papa, que, por
signal, Ihe abriu pessoalmente a porta do Va-
ticano, para que elle entrasse ; fallou com o
Rei da Italia; entrou em certas intimidades
com a Rainha da Rumania ; e, por ultimo, de
volta ao Brasil, deu-lhe para elogiar os turcos^
«povo ingenuo, cavalheiro, belle e bom» .
Esses elogios fizeram perder a cabega — nao
a do turco, mas a sua propria — ao sr. Etienne
Brasil, armenio, e portanto inimigo pessoal
do Sultao. Vae d'ahi, Exmo. Sr., o dr. arme-
nio Etienne Brasil tem escripto coisas tremen-
das contra Joao. Diz que Joao, para elogiar o
Turco, recebeu dinheiro dos pachas! Injus-
tiga! Porque nem os pachas hoje em dia t^m
dinheiro, nem Joao viu em tempo algum um
pacha. Em tudo isso o que ha e o seguinte :
O CABE9A DE TURCO 253
Joao tern a mania de ser turco e e bem capaz
de, for9ando o seu natural horror a generosi-
dade, pagar um cafe a um pacha, com a con-
digao deste certificar nalgum consulado que
elle, Joao, esteve com o Pacha. Joao, Exmo .
Sr., nunca foi nem amigo nem inimigo dos
turcos. Julga-se turco so porque andava de
turbante em Paris, da mesma sorte que os
pretos da Africa e seus similares do Brasil se
julgam latinos so por usarem as velhas carto-
las dos patroes e lunetas trincadas. Joao e
inofifensivo, bom rapaz e talentoso. A colonia
Syria do Rio de Janeiro nao deve espancal-o.
Elle anda mentalmente vestido de turco por
troga. E' o mais bem vestido dos nossos ty-
pos de rua, o mais elegante dos nossos typos
populares . Apenas isso . Uma doce mania
como outra qualquer. Assim, entendo que V.
Ex., no religioso exercicio das suas altas func-
goes, deve garantir o pello ao nosso patricio
Joao do Rio, que nunca viu um turco em dias
da sua vida e esta na imminencia de ser so-
vado, em plena America do Sul, por armenios
e syrios, que, ausentes da Palestina durante
tanto tempo, deram agora para confundil-o
com o Sultao, quando a verdade e que elle e
apenas afilhado de Sua Majestade.
Espero que V. Ex. tome em considera-
^ao estas linhas humanitarias e, sem re-
254 VBRDADKS INDISCRETAS
correr a verba secreta, proteja o nosso adora-
vel compatriota, tornando-se dest'arte credor
da estima e gratidao do seu patricio e admi-
rador,
Antonio Torres.
Uma semana alegra
. . . Pois, amigos, esta semana foi mais
alegre do que eu esperava. Alem das habi-
tuaes descomposturas dos jornaes, ahi esta
a campanha do sr. dr. F'linto d' Almeida
para que o Rio de Janeiro faga nas secgoes li-
vres das gazetas uma declaragao mais ou me-
nos como esta: «Ao Publico, aos meus ami-
gos E A Pra^a — Communico que de hoje em
deante passo a assignar-me Guanadara.n
Tivemos ainda um principio de bate-
bocca no Senado, por causa da construcgao do
novo edificio destinado aos formidaveis esta-
distasque diariamente cochilamnaquellacasar
assim como tivemos tambem o caso de um
famoso habeas-corpus a favor de uns deputados
amazonenses.
Esse habeas-corpus foi sensacional, por
ter permittido ao sr. ministro Pedro Lessa lan-
^ar ao paiz, numa phrase cheia de sarcasmor
256 VERDADES INDISCRETAS
a bofetada que o paiz faz questao de receber
pordia. Com effeito, para remediar aafflictiva
situagao do Amazonas, o sr. dr. Pedro Lessa,
officialmente, no nosso mais alto tribunal, des-
abnsadamente opinou por um alvitre que, se-
gundo declarou S. Ex. , e o unico aconselha-
vel : reformar a Constituigao com o intuito de
transformar aquelle territorio em principado
ou ducado que seria entregue a um dos mui-
tos principes allemaes, actualmente em dispo-
nibilidade. Muita gente ha que se tem escan-
dalisado com essa phrase. Eu, nao. O sr.
ministro, com esse safanao que nos deu, ate
se revelou muito patriota. O que em summa
deseja S. Ex. e o engrandecimento do Ama-
zonas; e como esta provada a nossa incapa-
cidade para realisar esse engrandecimento,
melhor se Ihe afifigura entregar aquelle territo-
rio a um principe allemao, que o tornaria rico
e prospero, si nao como a Alsacia-Lorena, ao
menos como o Rio Grande do Sul. . . Pena
e que o sr. dr. Pedro Lessa haja limitado asua
acgao patriotica somente ao Amazonas; e pois,
<:om o devido acatamento, pego licenga para
ampliar o alcance do seu alvitre a todo o Bra-
:sil. Nao e so o Amazonas que tem o direito
de ver-se livre da sua perigosa fauna de Pe-
dros Bacellares e Lopes Gon9alves, nao, se-
nhor. Entao acha justo S. Ex. limpar o Ama-
UMA SBMANA AI.BGRK 257
2onas com o chicote de um principe allemao,
e deixar proliferar em Minas os Franciscos
Salles com os respectivos Bressanes, no Para
OS Firmos Bragas, etc., etc. ? Nao. Nao seria
justo, nao seria humano. O que manda a Jus-
ti9a, de que S. Ex. e grande pontifice, e oque
o patriotismo impoe, e entregar o Brasil todo
a um principe allemao, o Brasil todo, inclusive
o sr. dr. Pedro Lessa, com sua pess6a e bens.
Porque um paiz onde, no mais alto tribunal,
ha um juiz do prestigio do sr. Pedro Lessa, e
que leva ate esse ponto o seu amor a ironia e
ao espirito de tro^a, merece realmente a tutela
do estrangeiro ; e um paiz maduro para um
protectorado. Deixemos, porem, este assum-
pto lugubre e passemos a tratar de coisas me-
nos escabrosas . . .
Guanabara / Tal o nome que o sr . dr .
F'linto d' Almeida propoe para substituir o
actual de Rio de Janeiro, estribando-se nas
seguintes razoes:
o nome Rio de Janeiro e longo e feio ;
Guanabara e curto e bonito ;
no Rio de Janeiro nao ha rio.
A estas razoes adduziu o sr. Magalhaes
^e Azeredo, nosso embaixador junto a Santa
S^, mais esta : que os estrangeiros dilftcil-
mente pronunciam o nome da nossa capital,
que estropiam sempre.
17
258 VKRDADES INDISCRETAS
Voto contra. Rio de Janeiro e denomi-
nagao que devemos conservar como documen-
to historico do alto engenho e da heroica per-
tinacia dos nossos Descobridores. Com effeito,
certo dia aqui chegou um capitao portuguez na
sua nau, e entrou pela bahia a dentro, uma
bahia immensa, um mar inconfundivel ; pois,
senhores, depois de muito olhar, de muito
examinar e de muito matutar, concluiu elle
la com OS alamares do seu gibao :
— Isto e um rio !
— E', concordou o seu piloto.
— Amen, gemeu o frade capellao.
E em toda a marinhagem lusitana nao se
achou um so homem capaz de notar que a bahia
nao era um rio ! Outros capitaes vieram depois;
percorreram toda a costa do Brasil; distingui-
ram e denominaram todos os cabos, ilhas, ba-
hias, enseadase rios que encontraram ; so nao
conseguiram distinguir a Bahia de Guanabara.
Conheciam tudo; chegando, porem, a nossa
bahia, cofiavam as barbas heroicas, arrimavam-
se aos montantes e rugiam de dentro das suas
couragas :
— Um rio e isto, ou nao serei eu bom
christao baptisado, confessado e commungado.
Em nome d'El-Rey Nosso Senhor o affirmo I
Que dizeis atal, Dom Vasco d'Athayde?
UMA SEMANA ALEGRE 259
— Bofe, que rio e e dos mais formosos
que hei visto em dias de vida minha ! Razao
tendes, sr. capitao, txovejava Dom Vasco^
apalpando a cruz da espada e ja disposto a ra-
char ao meio, com uma so cutilada, o vilaa
que o contrario ousasse dizer . . .
Portanto, agora e tarde. Nao ha erro de
nome que se possa corrigir depois de quatro-
centos e dezenove annos. E sera esse o unicoi^
Podera! Basta dizer que o Brasil foi desco-
berto a 22 de Abril e, nao obstante, oseu des-
cobrimento e commemorado a 3 de Maio I
Somos, pois, o paiz dos erros e enganos, al-
guns fataes, como o que victimou o finado Ti-
radentes.
E a Republica? Foi tambem procla-
mada por engano. Deodoro pensava que ia
somente derrubar o ministerio. Quando vol-
tou a si, o malja estava feito, quero dizer, a
Democracia estava fundada.
Demais, o nome do Rio nao e a unica
coisa errada que ha na America.
O nosso continente devia chamar-se Co-
lombia ; entretanto a Colombia e apenas um
pequeno paiz, ja meio devorado pelos Estados
Unidos.
Ha no sul um rio que se chama Rio da
Prata, embora no seu leito nao se encontre
uma gramma desse metal.
260 VERDADES INDISCRETAS
Temos aqui no Rio de Janeiro uma Aca-
demia de Letras onde quasi nao ha escripto-
res e pullulam os medicos, em virtude da ur-
^encia que tinham os outros academicos de ter
veterinarios junto de si ; em compensa9ao a
Academia Nacional de Medicina esta cheia de
<:avalheiros cujas aptidoes mentaes ainda nao
foram verificadas, mas que devem ser fatal-
mente litteratos.
O Senado Federal esta occupado por ho-
mens que tem obrigagao de fallar ao povo, e
^ntretanto nao sao capazes de abrir o bico, ao
passo que a Associagao Commercial, que de-
via evitar arroubos de rhetorica, e um ninho
de oradores, um viveiro de Demosthenes.
Como ve o sr. dr. F'linto, anda tudo a ma-
troca neste paiz . .
A mudan^a do nome da nossa capital tra-
ria complicagoes innumeraveis. Ja nao quero
alludir ao incommodo que seria para o talen-
toso nacionalista da colon iaportugueza, sr. dr.
Joao do Rio, ver-se obrigado a chamar-se dr.
Joao Guanabara. Pego a atten^ao do sr. dr.
F'linto apenaspara um caso que a S. Ex. mais
de perto deve tocar.
O imaginoso academico tem um livro de
versos intitulado Cantos e Cantigas. (Porto
— Livraria Chardron — 1915). Nesse livro
ha uma poesia que se chama Rua de Gongal-
UMA SBMANA ALEGRE 261
ves Dias^ daqual destaco (pags. 163 e 166)
as seguintes estrophes, que reputo primorosas
e reveladoras de um homem de genio, em
toda a nobre vastidao do vocabulo :
£^is-nos na antiga rua dos Latoeiros,
Rua com muitos titulos de gloria,
E que ha de ter na Historia,
Certo, um dos seus capitulos primeiros .
Ufana a rua de uma tal ventura,
Deu d poesia as suas sympathias
E ha muito em suas placas jd fulgura
O bello nome de Gonf alves Dias .
Mas nao, porque onde foram os sobrados
Em que vivera o poeta brasileiro,
Vive hoje a Associa^ao dos Empregados
No Commercio do Rio de Janeiro.
Estes versos trazem no livro a data de
1907 e sao, como se ve, portentosos. Bilac.
dizem, cuidava morrer de rir quando alguem
Ih'osrecordava, mas si ria, de inveja devia ser,
porque nao ha, em toda a obra do grande ly-
rico, nada que se possa comparar com esta pe-
quena epopea da rua dos Latoeiros.
Imaginemos agora que vingue a proposta
do sr. dr. F'linto. Gravissimo desastre seria
esse para a nossa litteratura, pois que obriga-
dos nos veriamos a alterar uma das melhores
quadras, a ultima das citadas, pela seguinte
f6rma :
262 VERDADES INDISCRETA.S
Mas nao, porque onde foram os sobrados
Em que vivera o poeta brasileiro,
Vive hoje a Associa9ao dos Empregados
No Commercio de Guanabara!
Soa mal, como se ve. Eis porque venho
eu supplicar ao sr. dr. F'linto, em nome das
bellasletras, em nome da litteratura nacional,
em nome da Esthetica, em nome das Came-
nas, em nome da sua propria gloria e em nome
da gloria da rua dos Latoeiros, pelas almas
do Purgatorio em geral e pela de Gongalves
Dias em particular, que nao mutile essa obra-
prima ou, como diria o dr. Joao do Rio, esse
chefe d'obra. O sr. dr. F'linto nao tem o di-
reito de concorrer para que se deturpe esse
primor que, ja agora, nao e exclusivamente
seu, mas esta irrevogavelmente incorporado
ao patrimonio intellectual nao do Brasil ape-
nas, mas de toda a America do Sul e da raga
latina !
Quanto aos estrangeiros, cujas difificulda-
des prosodicas tanta sympathia inspiram ao
sr. dr. Magalhaes de Azeredo, o remedio e
simples. Trate cada um delles de traduzir para
a lingua materna o nome da nossa capital .
Assim faz Sua Santidade o Papa, que e pes-
s6a de muita consideragao e respeito. De fa-
cto, communicando-se com os bispos brasilei-
ros na lingua official do Vatican©, que e a la-
UMA SEMANA ALEGRE 263
tina, nesta lingua escreve o Santo Padre o no-
me desta cidade, Assim, a personagem que
aqui e o sr. Cardeal Arcebispo do Rio, no pa-
teo de S. Damaso e adjacencias e Cardinalis
Archiepiscopus Sancti Sebastiani Fluminis
Jannuarii. Nos tambem costumamos traduzir
nomes de cidades estrangeiras. O que para os
allemaes e Me^iz e para os francezes Mayence,
para nos e Moguncia. Tambem, o que para nos
e Lisboa, e para o inglez Lisbon, para o Papa
Ulysipo, para os francezes Lisbonne e para os
allemaes Lissabona. Emquanto os allemaes di-
zem Koln, e os francezes Cologne, nos dize-
mos Colonia. Por isso nao descubro inconve-
niente em que cada estrangeiro va traduzindo
como poder no seu proprio idioma o nome do
Rio de Janeiro. Em Madrid ouviremos dizer
Rio de Enero\ em Paris, Fleuve de Janvier;
em Roma, Ftume di Gennajo', em Londres,
January -River, e em Bedim, Januar-Fluss.
Em Constantinopla nao sei como sera; mas
quem desejar informa96es autorisadas a tal
respeito queira dirigir-se ao sr. dr. Joao do Rio-
Pacha, que e turco e afilhado do Sultao .
E ahi tem o sr. dr. Filinto a minha opi-
niao, que S. Exa. nao pediu mas eu dei, por-
que quiz dar. E mais, direi que, si mudarmos
o nome da capital do paiz, temos de, pelas
mesmas razoes, mudar o nome do Estado do
264 VKRDADES INDISCRETAS
Rio. Pelo que, o melhor e ficarem as coisas
como estao.Nao Ihesbulam, que epeior.Esco-
Iha o sr. dr. Filinto outro meio deser agradavel
ao seu fraternal amigo Oscar Guanabarino,
critico musical. Em vez de mudar o nome da
capital, vamostrabalhar para que a City nao
despeje na bella bahia, como faz, as fezes da
cidade quasi em estado de natureza. Traba-
Ihemos para que a bahia de Guanabara deixe
de ser o que actualmente e: a mais formosa
das coisas fetidas. Isto, sim, seria util. O mais
sao byzantinismos. 01he,6 dr., e si forpossivel
vamos tambem ver si deixamos de fazer ver-
sos, sim?
O vendedor de passaros
Apanhar passaros para vendel-os e uma
profissao intermediaria entre a dos antigos
vendedores de escravos e a dos modernos
vendedores de escravas. A differenga que ha
entre o moderno vendedor de passaros e o
antigo vendedor de escravos e que este era
perseguido pelas leis e pelos crazadores da
Inglaterra, ao passo que aquelles escravisam e
vendem os passaros a sombra das posturas
municipaes e da indifferen9a britannica. Si a
Inglaterra o quizesse, os nossos passaros te-
riam o seu 13 de Maio. Quando os inglezes
pelos olhos dos seus estadistas, economistas
e financeiros, viram que a escravidao no Bra-
sil, sendo base da nossa agricultura, prejudi-
cava pela concurrencia a agricultura das suas
colonias e possessoes, onde a escravidao ja
f6ra extincta, que fizeram ? Foram a cathedral
de Westminster ; tiraram de la umas velhas
266 VERDADES INDISCRETAS
bandeiras, que serviram outrora para humi-
Ihar povos em nome da Humanidade, manda-
ram os seus publicistas escrever coisas solen-
nes no Times. . . Depois apparelharam cru-
zadores; declararam-se, como smpre, paladi-
nos da Civilisagao, e pozeram-se, muito a seu
commodo, a perseguir os navios negreiros. A
Humanidade, como sempre, vibrou com esse
lance magnifico da Inglaterra; e o BrasiJ, mais
do que a Humanidade toda. Travou-se entre
nos a peleja abolicionista. Castro Alves fez
versos ; Nabuco fez discursos ; Jose do Patro-
cinio fez artigos; os escravocratas fizeram op-
posigao ; os abolicionistas fizeram leis ; o Im-
perador fez uma viagem ; e a Princeza, no
meio de tudo isso, decretou a Aboligao.
Eu nao creio que os homens da Ingla-
terra tenham grande empenho na liberdade
dos passaros brasileiros; mas os passaros ingle-
zes talvez tenham nisso algum interesse... No
dia em que ficasse prohibido aprisionar, sem
motivo legal, passaros das nossas florestas,
provavelmente os passaros inglezes teriam no
nosso mercado muito maior cotagao do que a
que tem de presente ; e os inglezes, que de-
vastam os nossos rebanhos bovinos em bene-
ficio dos seus soldados, bem podiam, como
compensagao, proteger os nossos passaros.
O VENDEDOR DE PASSAROS 267
E' verdade que os passaros nao sao tao
immediatamente uteis como os bois, vaccas e
novilhas que elles matam em Mendes; mas
que importa isso a Inglaterra ? Quanto mais
alto e desinteressado f6r o motive apparente
das suas conquistas, tanto maior sera o seu
lucro. Porque foi que a Inglaterra conquistou
a India? Apenas para civilisal-a. E quanto
temlucrado os commerciantes, industriaes e
financeiros inglezes com esse acto de abne-
gagao ?. . . Em 1882, para poder pacificar o
Egypto, a Inglaterra bombardeou e incendiou
Alexandria. Mas a Humanidade (principal-
mente a humanidade ingleza) muito ganhou
com isso. Nessa transagao so os egypcios
perderam, entre outras coisas, a liberdade,sem
fallar no resto. Por isso digo : quanto mais
abstracto o motivo que mova a Inglaterra a
mobilisar as suas f6r9as militares, tanto maior
o seu lucro commercial. Parece que a gran-
deza material da Inglaterra marcha na razao
directa da metaphysica dos seus processes
absorventes.
Pensava eu em todas estas coisas pro-
fundas, depois de ler uma noticia curiosa a
respeito das aventuras de certo vendedor de
passaros. Chamava-se Olympio Pihto e andava
pela rua de S. Francisco Xavier, carre-
268 VERDADKS INDISCRETAS
gando as suas gaiolas cheias de passari-
nhos, quando deu de frente com um xidadao
brasileiro chamado Manoel Caldeira de Assis.
Sao ommissas as noticias quanto aos an-
tecedentes de ambos esses patriotas, de sorte
que o chronista nao tern infelizmente mate-
riaes que Ihe permittam tragar com clareza e
seguranga a psychologia do caso. O certo,
porem, e que Manoel Caldeira, defrontando-
se com Olympio, achou que este nao tinha di-
reito de andar com aquellas gaiolas de passa-
ros . Estas questoes de direito, al^m de serem
escabrosas, tem ainda este defeito: que, quan-
to mais discutidas sao, menos comprehensi-
veis se fazem. Creio que Manoel Caldeira 6
desta opiniao, porque nao discutiu com Olym-
pio o direito de prender passaros; nao Ihe re-
quereu habeas-corpus, nem Ihe oppoz em-
bargos, nem Ihe deu tempo para impetrar ma-
nutengao de posse. Nada disso ! Antes que
Olympio tivesse tempo de appellar para os
juizes do Rio ou para os de Berlim, fulminou-
o Caldeira com um interdicto prohibitorio a
pau nas gaiolas, seguido de um muito logico
alvara de soltura a favor dos coUeiros, pinta-
cilgos, patativas, gaturamos, sabids, cardeaes,
curios e bicos delacre,que se aproveitaram da
confusao reinante e, aruflando as azas, sacu-
dindo as pennas», fizeramcomo asillusoes de
O VENDEDOR DE PASSAROS 269
Raymundo Correa: foram-se para nao mais
tornar . . . Nao contente com a liberdade tao
generosamente concedida aos passarinhos, en-
tendeu Caldeira, como bom estrategista, que
o melhor seria iniciar logo uma ofifensiva con-
tra o Tyranno; e, si hem pensou, melhor o exe-
cutou, atacando Olympio a murros nas ventas
em nome da Liberdade; pelo que, Olympio,
com o seu longo habito de lidar com passaros,
resolveu imital-os, quero dizer, voou tambem.
Mas — 6 triste ! 6 mesquinha sorte dos liber-
tadores ! — gente do povo, ignara e proterva,
nao atinando com o alcance moral, social e
humanitario da faganha de Manoel Caldeira,
correu-lhe sus! Peor aventura do que esta so
succedeu, que eu saiba, ao grande Dom Qui-
xote, que, tendo libertado com a sua langa in-
corruptivel uma leva de presos que iam acor-
rentados para o presidio, como, apoz tao gran-
de proeza, quizesse obrigal-os a ir agradecer
a sua libertagao a mui nobre e formosa Dul-
cinea del Toboso, foi por elles apedrejado e
sovado ; depois do que, fugiram todos, antes
que por ali chegassem refor9os da Santa Ir-
mandade ... A Manoel Caldeira quern o per-
seguiu nao foram os libertados, visto que por
felicidade delle e nossa, os passaros ainda nao
tern forgas que bastem para atirar pedradas.
270 VERDADES INDISCRBTAS
. Entretanto, Caldeira, o Libertador, que
tinha visto voar os passarinhos e seu dono,
imitou-os tambem; e la se foi, correndoa bom
correr, pela rua S . Francisco Xavier a fora,
ate que embarafustou por um capinzal proxi-
mo ao Jockey-Club. Nesse capinzal trabalhava
um certo Jose Angelo, que, vendo correr Cal-
deira perseguido pelo povo, adheriu a massa
perseguidora e tentou tomar-lhe a dianteira;
mas Caldeira, apanhando um tridente que es-
tavano chao, deu com elle uma pancada na
cabega de Angelo, que caiu desaccordado.
Ahi, ja desorientado, foi preso por populares,
que o atacaram a cacete. Resultado: Angelo
foi para a Santa Casa; Caldeira, o ornitho-
philo, depois da indispensavel escala pela As-
sistencia, foi dar com os ossos no xadrez no
15° districto. E ahi esta como um acto de ge-
nerosidade se transforma, de um moment©
para outro, em noticia policial. Quanto ao
vendedorde passaros, esta ate agora voando
atraz dos bicos de lacre. E', pelo menos, o que
parece. . .
Eu nao sei si Manoel Caldeira, quando
se arvorou em Tiradentes dos pintacilgos, obe-
deceu a impulsos puramente libertarios ou a
impulsos de vingan^a contra Olympic, o Se-
O VENDKDOR DB PASSAROS 27 1
nhor dos Passaros ; mas, seja como for, nao
se pode deixar de ter sympathia por elle. A
vinganga, quando proporciona azado ensejo a
pratica de algum acto nobre que aproveite a
innocentes, nobilita-se por isso. No caso do
Caldeira, cresce a minha sympathia ao pensar
que elle, para libertar patativas, teve de ferir
um pobre homem e foi esbarrar no xadrez.
Eterna ligao aos libertadores, eterna e incom-
prehendida. . . O libertador nunca pode ati-
rar aos grandes ventos do mundo um principio
de Uberdade sem ferir a propriedade de
muitos. Ora, o maior crime que ha para a so-
ciedade conservadora e a violagao da proprie-
dade. O codigo admitte attenuantes para o
homicidio ; mas matar para roubar e crime que
so tem aggravantes, ainda quando o homicida
chegue a provar que, no momento do seu cri-
me, estava hallucinado pela fome ou desespe-
rado por ver famintos os seus filhos. Quando
aquelle homem chamado Spartacus tentou
libertar os escravos de Roma, o seu primeiro
crime foi attentar contra a propriedade dos
senhores sobre os escravos. Quando aquelles
outros da Revolu9ao Francezaproclamaram os
Direitosdo Homem, o seu primeiro crime, ao
menos na opiniao dos realistas, era attentar
contra a propriedade que tinha o Rei sobre as
terras e mais bens dos seus subditos. Quanda
272 VERDADKS INDISCRETAS
agora, nos nossos dias, os revolucionarios exi-
gem mais equitativa distribuigao da riqueza,
nao exigem nenhum absurdo : mas sao per-
seguidos, porque o burguez,que ajuntou o seu
dinheiro e metalisou o seu coragao, so estima
no mundo o seu ouro e pouco se Ihe da que
haja famintos, comtanto que se respeitem os
seus sacratissimos direitos de propriedade.
Assim, Manoel Caldeira, soltando os passaros
de Olympio, attentou contra a propriedade
deste ; e foi por isso que a policia o perseguiu;
e o povileo, com a sua multisecular incon-
sciencia, correu-lhe ao encal^o para defender
urn direito que as massas respeitam por ata-
vismo.
Quanto aos passaros, nao os condemne-
mos por nao terem ido ainda ao xadrez agra-
decer ao Caldeira a sua liberdade. Dos nove
leprosos que Jesus-Christo curou, parece que,
por emquanto, so um se lembrou de agrade-
cer-Ihe tamanho prodigio. Os passaros sao
distrahidos, como os homens. Entre uns e ou-
tros a differen9a, salvo exterioridades eviden-
tes, nao e das mais profundas : apenas, em-
quanto OS passaros cantam sem saber musica,
OS homens cantam por musica ; mas em m|i-
teria de gratidao, uns e outros se parecem . . .
Brule e o seu publico
A Noticia^ sempre excellente, consolava
liontem a todos n6s de um desastre immenso:
a companhia Brule representou no Municipal
uma pe9a excessivamente tragica de grao-
guinhol ; e durante as passagens maistragica-
mente guinholescas, o publico ria-se, diverti-
dissimo. Senhores barrigoidos e portanto res-
peitaveis sentiam arrebentar-se-lhes os cos das
calgas quando alguma das actrizes, em caretas
bem francezas, intentava traduzir angustia.
Damas da mais alta representagao mundana
sentiam derreter-se-lhes nos rostos os unguen-
tos que a Providencia, sempre boa, suggeriu d
imagina9ao humana contra as rugas. Senhoras
elegantissimas tinham que recorrer ao p6 de
arroz das bolsinhas caras, para recompor o
rosto desfeiado por alegres lagrimas, alegres
e estrepitosas lagrimas arrancadas por Brule
quando, em esgares inimitaveis, gragas ao seu
18
274 Y^RDADES INDISCRETAS
estrabismo celebre, interpretava tortures mo-
raes. Porque Brule e, antes de tudo, irresistivel
como actor comico. E' um dos maiores humo-
ristas dos boulevards. Ja me havia dito um fre-
quentador do Municipal, ha dias, que o nossa
publico se ri de bon coeur quando Brule falla ;
quando Brule se cala ; quando Brule anda \
quando Brule limpa com o len90 a poeira dos
sapatos; quando Brule colloca no bolsinho a
seu lengo branco, digno de Desdemona; em-
fim acabou-se, quando Brule apparece no pal-
co do Municipal, derrota em comico o nossa
popularissimo Brandao, gloria nacional coma
o sempre chorado Joao Caetano.
— Mas porque ? — perguntei.
— Nao sei, respondeu-me elle. O que
sei dizer e que, muitas vezes, phrases escriptas.
apenas para fazer sorrir de leve, ditas por
Brule ou por alguem do seu grupo, sao fabri-
cas de gargalhadas. Em Paris geralmente a
publico sublinha com sorrisos certos parado-
xes ditos em scena. Aqui toda a gente se ri
desbandeiradamente. Porque serd ?
Estudei dia e noite esse phenomeno pa-^
tho-mundano. Consultei os autores. Meditei
como um touro inglez quando rumina a sua
alfafa a um canto do curral. E, como Archime-
des, eureka / Achei a chave do enigma e vem.
BRCI,:fe E O SieU PUBI<ICO 275
a ser que : o publico ri, porque nao entende^
mas quer mostrar que entendeu.
A capacidade mental desse publico pode
rcduzir-se arithmeticamente ao seguinte :
50 % do publico nao comprehendem francez ;
30% comprehendem francez, mas naotem agi-
lidade mental que Ihes permitta apanhar no ar
OS floculos fugidios de um paradoxo, coma
um falcao agarra uma pomba no meio do seu
voo ; ou tomar de repente uma idea qut es-
voa^a, e alar-se com ella no espa90,como uma
gaivota marinha apanha o peixinho que
descuidoso se embala na onda que foge . .
Restam 20 % de espectadores capazes de en-
tender as intengoes paradoxaes do autor, caso
o actor tenha talento para sublinhal-as com um
sorriso, com uma inflexao de voz appropriada
a phrase, com uma simples contrac9ao, leve, de
musculos faciaes ; mas, destes vinte especta-
dores aptos para entender uma comedia fina,
ha dezoito que estao distrahidos, pensando
na costureira da mulher, em negocios, em le-
tras por veneer, ou entao dormindo pezada-
mente, no trabalho brutal da digestao . De
sorte que, contas feitas, sobre cada cem espe-
ctadores do Municipal, apenas dous haverd
que estejam comprehendendo a pega; destes
dous bemaventurados, um, discreto, sorri com-
sigo mesmo, sem inter^esse por que outros o
VBRDXDBS IND1SCRETA5
• n nutro embora intelUgente,
^ejam ^-^^^V^isinhos revels a sua
sorri para ^^J^^i^^^^^ Ora. os visi-
aeudeza e o seu PO^Ys . or sua vez,
Zs destes d°« ^^^-^.Tbem tnt'endem. que
para mostrarem que ^""""^^hem bebem do
Lmbem percebem, ^"^^ J^^m mais alto,
fino; o-visinhosdosuhmosne ^^ ^^^^^
^^ '^^ "^tdistVo de Io.st; mens intelU-
ou menos '»f ^^^^^ ftada relinchante de
gentesampUa-senag^s ^, gexo.
noveuta e <»;;,f;- ^^ ser em Pansum
Eis porque B"^"'^' ^^^ <jeve, a meu ver, pen-
actor de terceira ordem.de ,
sar da pl-t^^^"'°'^: ,t%o respeitavel pu-
larissimo pensou certa vez ao v
bUco de Pin<i»«°"^Sao popularissimo no
Kepresenma B anda° P^ urn drama no-
palco scemco d aquella ci ^ g^^
drama e uma das obras ^^^f^^^^^, po-
theatro portuguez. ^^^'J „ bUco numa
pularissimo arremett.a contra op ^^ ^9
^'aquellas emoc.onant.ss.m^^ W ^^^^^
contra o capOao ^^^^ °^' "^r pu,arissimo erj
convencidodequeBrandaop P ^
o primeiro com.co b-;J^°. ^„ , aizer bai
S^pa^'oTfe^s^impanheiros de scena
BRUL^ E O SEU PUBLICO 277
— Mas que grandes burros ! Que gran-
dessissimos burros !
Brule, la com o seu lencinho cosmopolita,
esse lencinho que tern sido a perdi^ao de tan--
tas Desdemonas de Montmartre e do tropica
de Capricornio ; Brule, la com a sua melin-
drosa gardenia de guerra (que, felizmente para
a Civilisagao, nunca foi as linhas do Marne)>
deve, repetindo insconscientemente Brandao
popularissimo, dizer a seus comparsas :
— Mais Us sont betes tout de meme, ces
rastas / Ah / les goujats /
*
O' Publico ! Publico amigo ! Eu nao sei
bem o que pensas de Brule e de ti mesmo,
porque, dizendo a verdade, nem sei si pensa-
rds. Mas o que Brule pensa de ti, Publico ado-
ravel, deve estarmaisou menos nessas poucas
linhas em francez que acabo de offerecer-te .
Entretanto, 6 Publico do meu cora9ao, o que
deverias pensar de ti mesmo e o seguinte :
ccEu nao devia estar aqui no Municipal
todos OS dias para ver as casacas de Brul^ ha
tres annos consecutivos. Brule em Paris 6
actor de terceira ordem. BruM diz que esti
fazendo propaganda da Franca e no emtanto
nos vem dar, em recita official, Le Traite
d'Auteuil, vodevil patife, em que a Fran9a,
278 VERDADES INDISCRETAS
ou, melhor dizendo, a alma franceza, apparece
de tal sorte, que justifica tudo quanto os alle-
maes dizem da corrupgao parisiense. Por can-
seguinte, Brule 6 mau francez. Ora eu, na mi-
nha qualidade de Publico burguez, pacato e
aliiado, nao posso prestigiar com aminha pre-
seuga a philaucia de um francez que vem fazer
propaganda da Fran9a com o Traite d'Au-
teuil e com as Demi- Vierges do detestavel en-
genheiro Prevost. Demais a mais, eu nao en-
tendo o que dizem Brule e essas raparigas
decotadas que eu cuido ja ter visto ali na Con-
feitaria Colombo asseis datarde. Eu, que sou
o respeitavel Publico, ji ouvi algum dia fallar
na Sabine Landray e nas outras? Nao. Os
jornaes e que andaram ahi adizer que a Lan-
dray e a Fabry eram grandes actrizes. E eu,
como um alarve, acreditei. Acreditei e vim,
paguei, vi e applaudi ; mas nao entendi ; por
consequencia, revelei-me parvo ; ora o papel
de parvo e incompativel com a minha alta e
pan^uda posigao de respeitavel Publico. Eu so
posso applaudir o Cid, Shy lock y Cinna, Es-
ther, Luiz XI, Rormersholm, Os Espectros, Le
monde ou I on sennuie e Le Voyage de Mon-
sieur Perrichon, porque sao pegas ja consa-
gradas pelos applausos dos entendidos. E eu
sou entendido em theatro ? Nao. Eu sou en-
tehdido em manganez, jogo do bicho, arren-
BRDI.fe E O SEU PUBI^ICO 279
damento de navios, oscillagoes bancarias, fei-
jao, arroz, trigo, construcyoes de predios,
fornecimentos a ministerios, estradas de ferro
« manifesta96es conservadoras. O meu logar
^ nos bancos, na Bolsa, nos escriptorios de
commissoes e consigna^oes, nas assembleas
industriaes, nos centres de commercio, nas
irmandades, nas directorias de hospitaes, na
Magonaria, nas ligas patrioticas situacionistas,
nos conselhos deliberativos de sociedades fi-
nanceiras e nas recep9oes de gente rica e cheia
de callos, jogando bridge e bocejando, ou en-
tao fazendo gyrar o poUegar da mao direita
em torno do pollegar da mao esquerda e vice-
versa. Eu so devo ir a theatros onde repre-
sentem companhias portuguezas e brasileiras.
A bella chala9a, o pontape na espinha, o guarda
nocturno da zona, o compadre da revista, a
apotheose fulgurante de latilhas e luz de ma-
^nesio, isso, sim, esta ao alcance da minha
vasta inteliigencia. Mas o theatro francez mo-
derno, esse nao o entendo eu; e, nao o enten-
dendo, exponho-me a esse ridicule deapplau-
dir Brule, actor de terceira classe, como si
applaudisse Zacconi, e de bater palmas a
pegas que, si eu e minhas filhas entendesse-
mos, nao teriamos approvado, porque sao
immoraes. E' por isso que Roberto Gomes,
segundo dizem, vae explicar no Municipal o
280 VERDADES INDISCRETAS
que seja Pelleas et Melisande, antes do espe-
ctaculo. Brule, que sabe que eu nao entendo
nada de theatre, pediu a Roberto que me
viesse dizer que Pelleas et Melisande e diffe-
rente do Forrobodo, e que Maetterlinck nao
e bem egual a Eduardo Garrido ; e Roberto,
sempre benigno, vae explicar-me todas
essas coisas transcendentes. Ora, Roberto
ficaria livre dessas fadigas intellectuaes e vo-
caes, si eu entendesse de theatro o sufficiente
para ver que Brule e um bom Arsene Lupin e
nada mais. Portanto, o que eu devo fazer e
nao ir ao Municipal, onde me sinto deslocado^
onde so devem ir os competentes e onde eu
rio quando e hora de chorar e choro quando e
hora de rir.»
Eis ahi, 6 Publico amavel, o que devias
dizer a ti mesmo; e, depois de dizer tudo isso
a ti proprio, devias pratical-o, abandonan-
do o Municipal e indo ao S. Jose, onde te
sentes tao a tua vontade . . .
Brasileiros e estrangeiras
Segundo se affirma, ha na nova reforma
do Ministerio do Exterior uma disposigao hos-
til ao casamento entre diplomatas brasileiros
e mulheres estrangeiras. Por esse dispositivo
nao ficam terminantemente prohibidos taes
enlaces, mas qualquer diplomata brasileiro,
que desejar — como diria o sr. Ruy Barbosa —
fazer maridanga com mulher forasteira, tera de
solicitar licenga ao ministro do Exterior.
Ha queni affirme ser perfeitamente inu-
til semelhante artigo, sobre o seguinte funda-
mento : a menos que se trate de alguma actriz
malafamada, ou de alguma prostituta celebre,
que tenha seduzido algum dos nossos diplo-
matas, estes sempre obterao licenga para casar
com estrangeiras. Por exemplo: um diplomata
nosso pede e obtem licen^a para casar-se
com uma ingleza ; como negara o ministro
licen^a a outro que deseje tomar por esposa
282 VERDADES INDISCRKTAS
uma argentina, que esteja em egualdade de
^ondigoes moraes e sociaes com a ingleza?
Admittamos aindaahypothese em que o
ministro, por antipathia para com certo diplo-
mata, Ihe negueuma licenga, embora egual ja
tenha sido concedida a outros. O caso e perfei-
tamente possivel. Nada mais natural do que
haver animadversoes entre o ministro do Ex-
terior e seus subordinados, principalmente si
o ministro houver sido tirado da carreira di-
plomatica. . . Bem pode ser, com effeito, que,
entre o ministro e o diplomata em questao,
haja havido outrora algum incidente por amor
de alguma transferencia ou de alguma promo-
^ao em que um tenha sido supplantado pelo
outro. O ministro, pois, aproveita-se da situa-
^ao para vingar-se do seu antagonista, fazen-
do-lhe picuinhas em materia delicada, como e
o casamento. Chega a negar-lhe a licen^a pe-
dida, embora se trate de senhora digna de
casar-se com qualquer dos mais gravibundos
diplomatas.
Que fazer num caso desses ? Como agir
para com semelhante ministro ? Mandar ami-
gos fallar a S. Ex. ? Mas S. Ex. podera dizer
a esses amigos, limpando com o lengo as suas
lunetas :
BRASII^EIROS E ^TRANGEIRAS 283
— Nao pensem voces que eu queira per-
seguir o homem. Si Ihe neguei a licenga, foi
porque tinha motivos. . .
— Mas n5o pode ser, sr. ministro. Sabe-
mos que se tratade umasenhora honesta. Nos
a conhecemos de Paris, de Londres, de
Haya. . .
— Mas nao podem conhecel-a tanto
quanto eu, que alias nunca a vi. Sei que ella
nao merece a mao, por tantos titulos illustre,
do nosso amigo. Tenho informagoes dos agen-
tes confidenciaes . . .
Desolados, escrevem os amigos ao diplo-
mata :
(nCaro F . — O seu caso sentimental, que
/, como V. sabe, tambem o nosso caso, compli-
ca-se cada vez mais. Estivemos eu e B. com o
ministro, que se mostrou inconciliavel a esse
respeito. Deve haver por ahi intrigantes inte-
ressados em molestal-o, porque, conkecendo como
conhecemos a sua noiva e a V. tambem, que
jamais commetteria a leviandade de dar o seu
nome a mulher que o nao merecesse, passamos
pela surpresa de ouvir declarar o ministro que
fundamento da recusa da licenga eram in-
formagoes desfavoraveis a Madame Tres Es-
trellas, informagoes que — la o disse S. Ex . —
Ihe for am mandadas por agentes confidenciaes!
284 VERDADES INDISCRETAS
Veja si ha, entri os nossos agentes confiden-
ciaes aki, algum que tenha motivo de resenti-
mento contra V.. Mande-me suas or dens e creia
que OS seus amigos tudo farao pela sua felici-
dade, so desejando todos desmascarar os inimi-
gos occultos da sua noiva. Procure V. indagar
do grau de relagdes que por ventura existam
entre a familia de sua 7ioiva e o ministro da
Hollanda aqui. Ndo set porque, ando mHo des-
confiado deste fidalgo . . . Sempre seu — /4 . »
Ora, o diplomata sabe perfeitamente que
o ministro da Hollanda nada tern que ver com
a attitude do ministro do Exterior ; que na
s6de da sua iegagao nao ha agentes confiden-
ciaes do Brasil ; e que ^ua noiva e respeitadis-
sima ; pelo que, urra de la aos amigos pelo
cabo submarino : a. Ministro mentiu : nenhum
confidencial aqui ; Hollanda innocente.y>
Supponhamos agora que o diplomata seja
o que se chama homem de genio forte, e veja
sua noiva emmaranhada pelo ministro nesse
labiryntho de infamantes insinua96es. A tal
homem so Ihe resta uma saida : pedir licen9a,
ou, ainda sem licenga, vir ao Rio de Janeiro,
correr ao Itamaraty, cair como um raio no ga-
binete do sr. ministro e partir a murros uns
tres ou quatro dentes a S. Ex., caso os tenha.
A saida nao sera das mais finamente diploma-
BRASILEIRO K BSTRANGBIRAS 285
ticas, mas, para casos desses, nao vislumbro
outra. E os senhores vao ver que o future tal-
vez me d^ razao : esse dispositive da reforma
ainda nos proporcionara bons pratinhos . . .
Ha quern ja tenha suggerido adoptar o
que se pratica na Inglaterra : prohibi9ao abso-
luta, para qualquer agente diplomatico, de
casar-se com mulher que nao seja ingleza.
A isto se responde, dizendo que:
Primeiro — nao se pode por freio ao co-
ragao de ninguem;
Segundo — a Inglaterra ja pode es-
tabelecer limitagoes nesse sentido, ao passo
que n6s ainda nao estamos em condi96esde
fazel-o.
Com effeito, a Inglaterra tem abundan-
cia de mulheres bellas e aptas a serem b6as e
leaes companheiras do homem que eleger o
seu cora9ao; nos ainda nao temos o necessa-
rio . . . O diplomata inglez que, em todo o
Reino Unido e no Imperio Britannico,nao en-
contrar uma mulher a sua feigao, ou nao tem
sorte nenhuma, ou entao e exigente de mais.
No Brasil, ja o caso e mais complicado.
O rapaz que segue a carreira diplomatica pas-
sa geralmente tres a quatro e mais annos no
estrangeiro. Por la trava elle suas rela^oes fa-
miliares; portanto, nada mais natural que se
embeice por alguma das m69as do paiz e se
286 VBRDADKS INDISCRETAS
case com ella. Demos, entretanto, de barato,
que o rapaz, depois de quatro annos de au-
sencia, volte solteiro para o Brasil e queira
casar-se com uma patricia. O diplomata, ge-
ralmente, nao conhece as m69as do interior;
e, embora venhaaconhecel-as, provavelmente
nao querera tomar por mulher uma rapariga
bisonha. inexperiente e talvez refractaria ao
viver que Ihe destina seu marido. Assim, elle
tem de escolher esposa por aqui mesmo.
Diz o dictado que quern imagina nao
casa; ora, quem imagina alguns momentos a
respeito das meninas do Rio, fica sem saber si
casa ou nao casa. Ha de haver com certeza
por ahi muita menina que, sendo intelligente
e interessante, seja tambem honesta; mas ne-
nhuma dellas traz estrella na fronte para dis-
tinguir-se das que nao osao. E que pensar da
moralidade domestica dominante numa cida-
de em que, aos primeiros rebates do Carna-
val, saltam para a rua as md^as todas, com
suas maes e sens paes, com seus irmaos e seus
noivos, com as suas irmas menores, a berrar
despejadamente dentro de caminhoes, e a
cantar coisas tao torpes que o jornaes se
veem obrigados a chamar a atten^ao da poli-
cia ? Ninguem quer que as md^as e as meni-
nas se vistam de burel e passem os dias em
jejuns e cilicios; mas tambem nao se p6de
BRASII,BlROS B ESTRANGEIRAS 287
permittir que lev em a sua liberdade ao ponto
de entoar cantigas tao iicenciosas, que nao se
usam nem em assembleas de meretrizes, a
nao ser que se trate de rebombeiras da mais
baixa extracgao. De maneira que, ao ver uma
menina e ao pensar em casar-se com ella,
deve o rapaz interrogar: «Tera esta pequena.
feito o Carnaval ? Tera cantado o Na minka
cdsa nao se raclia lenha ?» (1)
Grave erro sera suppor que os rapazes bra-
sileiros, na suamaioria, desejem casar-se com
(1) Entre as canfoes mais em voga durante o ulti-
mo Carnaval (1920), uma havia cuja letra era a seguinte
CAVALHEIROS
Na minha casa nao se racha lenha !
DAMAS
Na minha racha ! Na minha racha !
CAVAI^HEIROS
Na minha casa nao ha falta d'agua !
DAMAS
Na minha abunda ! Na minha abunda !
DAMAS
Na minha casa nao se pica fumo !
CAVALHEIKOS
Na minha pica ! Na minha pica !
K assim por deante. . .
f^stas torpezas, em que a ausencia de espirito se^
consnbstancia com a mais repugnante falta de gram-
matica, eram cantadas i. porfia por mo90s e mopas que
se presumem de bdas familias. A policia interveio ^
tempo de impedir que se generalisassem esses miasmas-
moraes.
288 VERDADES INDISCRETAS
meninas carnavalescas e levianas. A essas
apreciam-nas os rapazes como companheiras
de troga; quando, por^m,se trata de casamen-
to, buscam outras. . .
Tenhamos a coragem precisa para re-
conhecer o seguinte: o systema de educagao
adoptado para as meninas cariocas, assim
como para as de outras cidades gran-
des do nosso paiz, e pessimo. Essa educa-
gao consiste num pouco de musica (piano e
canto), algumas lambugens de lingua patria e
de francez, dansa, futebol e arte de cagar ma-
ridos. A mo^a estrangeira, sem saber musica
e entendendo mediocremente de futebol, sa-
bendo theoricamente muito menos do que a
brasileira de beiramar, que e a mais civilisada
das brasileiras; a m69a estrangeira, como nas-
ceu e foi educada no trabalho em outros cen-
tros de cultura e civilisa9ao, sabe trabalhar,
sabe defender-se na lucta pela vida e sabe ser
esposa seria, grave, solidamente compe-
netrada assim dosseus deveres como dos seus
direitos. D'ahi, a preferencia que vao tendo
as estrangeiras (francezas e italianas poucas,
inglezas, um pouco mais, argentinas ja algu-
mas, e principalmente as allemans) perante jo-
vens brasileiros. A muitos conhe90 eu casa-
dos com estrangeiras e dao-se a maravilha
com ellas e ellas com elles. De varios sei eu,
BRASII.B1ROS B ESTRANGKIRAS 289
rapazes de b6as familias e de b6as prendas,
bem educados, bem apessoados, alguns ate
com dinheiro de seu, que aguardam opportu-
nidade para ir i. Europa, onde pensam em ca-
sar-se, de preferencia com allemans, que as
ha lindissimas, e sao geralmente mulheres
muito calmas, muito b6as donas de casa e ha-
bituadas a ver o mundo atravez das pupillas
de seus maridos. As nossas patricias, pois, es-
tao, no terreno sentimental e domestic©,
amea^adas de perigosa concorrencia . . .
O que aqui digo 6 o que observo e o que
0U90 a amigos e conhecidos dignos de marca.
Nao se trata da mulher do interior, a mdga
brasileira authentica, muito santa, b6a engom-
madeira, mae maravilhosa, esposa adoravel
como enfermeira, mas enfermeira muito in-
sipida para esposa ... A mulher de que aqui
se trata e a brasileira civilisada. Ora, esta, na
concorrencia, tem de ser derrotada pela es-
trangeira; porque a estrangeira medianamen-
te educada e necessariamente mais intelli-
gente, mais fina e mais civilisada do que
a brasileira finamente educada, que traz para
o lar, juntamente com a sua educa^So, uma
serie in6ndavel de preconceitos arices-
traes contra os trabalhos caseiros e coritra
a submissao que todas devem a seus msiridos
em virtude do direito natural do mais forte so-
19
290 VERDADES INDISCRETAS
bre a mais fraca. Ha excepgoes, mas ninguem
pode argumentar com excepgoes, porque es-
tas s6 servem para confirmar a regra geral.
Ahi esta porque muitos rapazes de fina edu-
ca^ao se temem de casar-se com as patricias,
porque nao sabem o que esta do outro lado
do veo ... E as mogas, que, com a sua desen-
voltura e o seu desbragamento carnavalesco,
suppoemarranjar bons parti dos, v6am linda-
mente, alegremente, para a sua propria ruina»
visto que OS rapazes serios, graves, que dese-
jam formar o seu lar honestamente, sem re-
ceio de serem victimas do ridiculo e aponta-
dos na rua, a dedo, como capricorneos, esses
nao se casam com meninas assanhadas; mas,
como nao e facil distinguir entre levianas e
virtuosas, vao elles,por seguro, preferindo es-
trangeiras; ate porque, no caso de engano,
muito menos doloroso sera para qualquer ho-
mem ser trahido por estrangeiras do que por
patricias. Isto para os simples mortaes, que
nao fazem parte da carreira diplomatica.
Que diremos entao dos diplomatas, que
passam annos longe das patricias ? Direriios
/que nao se Ihes p6de cercear o direito de es-
colher esposas entre as mulheres honestas dos
paizes em que servirem. Demais, o casamen-
to entre brasileiros e estrangeiras s6 nois p6-
de trazer vantagens, uma das quaes e nao das
BRASILBIROS K ESTRANGEIRAS 291
menos apreciaveis, e a de melhorar a nossa
triste raga ...
Claro esti que, quando eu digo mulkeres
estrangiiras, entendo alludir a ra9as fortes e
bellas, como a germanica, a anglo-saxonica, a
slava e a italica. Em materia de mulheres,
como em materia de industrias texteis,nao po-
demos ainda ser proteccionistas, porque, em
ambos estes pontos, o estrangeiro, por em-
quanto, produz e ainda durante muito tempo
produzira mais, melhor e mais barato do que
nos. Em questoes de mulheres, so podemos e
devemos ser livrescambistas . . .
Vinte e um de abril
Nao ha necessidade de dizer quern
haja sido o alferes Joaquim Jose da Silva
Xavier, o Tiradentes. Toda a gente sabe que
esse glorioso compatriota foi um sonhador que
a tyrannia portugueza mandou enforcar e es-
quartejar por ter querido libertar a sua patria
de um jugo infame e infamante. Mas o que
nem toda a gente sabe (porque poucos sac
ainda os que se dao aos estudos da nossa His-
toria) e que essa conspira^ao do Tiradentes,
tao exemplarmente castigada pelo colonisa-
dor tyrannico e bronco, era um simples epi-
sodic do permanente espirito de revolta que a
tyrannia portugueza mantinha em Minas,
como em todo o Brasil, mas principalmente
em Minas.
Jd tinha havido a guerra mineira entre
paulistas e emboabas (como eram conhecidos
OS portuguezes), a qual durou de 1710 a 1715.
294 VSRDADES INDISCRETAS
Ja tinha havido a subleva;9ao de Philippe dos
Santos em Villa Rica, no anno de 1720, sen-
do Philippe dos Santos, consoante os estylos,
enforcado e esquartejado por ordem do fero-
cissimo conde de Assumar, governador da
Capitania. Outras sublevagSes se tinham dado
em outros pontos.
A corte de Lisboa nunca pensou num
so beneficio a conceder aos povos das Minas.
Para as Minas eram man dados como gover-
nadores (salvo rarissimas excepgoes, como o
esclarecido dom Rodrigo de Menezes) fidal-
gos arrebentados, devassos, concussionarios,
ladroes averiguados, verdadeiros degenera-
dos e desclassificados que Lisb6a afastava de
si para o Brasil como si atira o lixo no mon-
turo. Quem qufzer ter idea do que foi a
colonisagao portugueza, principalmente em
Minas, leia a Historia Antiga das Minas, de
Diogo de Vasconcellos, as Memorias do Dis-
TRiCTo DiAMANTiNO.deJ.Felicio dosSantos,as
Ephemerides Mineiras, de Jose Pedro Xavier
da Veiga. Sao livros feitos exclusivamente de
documentos.
Querem conhecer algumas amostras, co-
Ihidas nas Ephemerides ? Pois ahi vao...
A 12 de outubro de 1758, ordensr^gias
prohibiam a abertura de estradas na capitania
VINTB B UM DB ABRII, 295
de Minas, para evitar o extravio do ouro e dos
diamantes. A carta regia de 25 de mar90 de
1725 e a ordem de 29 de abril de 1727 ja
tinham mandado suspender a abertura de ca-
minhos de Minas para Matto Grosso. As or-
dens de 30 de abril del727 e 15 de setembro
de 1730 tinham j a prohibido a abertura deu ma
nova estrada de S. Paulo para Minas.
O alvara real de 27 de outubro de 1733
prohibiu abrir novas picadas para as minas
descobertas ou por descobrir.
A ordem regia de 9 de abril de 1745
prohibiu uma estrada de Ayuruoca para o rio
Parahyba.
Que systemaintelligente de colonisagao !
Realmente Joao de Barros tem razao para
vir aqui convencer-nos daenergia civilisadora
da sua raga . . .
Impossibilitados de viver da extracgao do
ouro, porque este pertencia quasi todo ao rei
de Portugual, deliberaram os mineiros recor-
rer a agricultura, a industria e ao commercio
para poderem viver.
Entre outras coisas que fizeram, come9a-
ram a plantar canna de assucar e a levantar
engenhos para beneficial-a. Pois a 18 de no-
vembro de 1715 uma carta regia ordenava ao
governador da capitania, dom Braz Balthazar
296 VERDADES INDISCRETAS
da Silveira, que prohibisse o levantamento de
mais engenhos de assucar em Minas «porque
occupavam grande numero de negros, que de-
viam estar occupados na extracgao do ouro ! »
Hurrah ! pela intelligente raga colonisa-
dora ! . . .
Os brasileiros sempre foram amigos da
leitura. Entretanto era prohibida a entrada de
livros no Brasil ! Livros aqui so entravam de
contrabando e , . . ai de quern fosse encon-
trado a ler livro que nao fosse o das Horas
Marianas ! Nao contente a corte de Lisboa
com isso, uma carta regia de 6 de julho de
1747 ainda prohibiu, sob penas severissimas
(agoites, confisco, degredo para a India, etc . )
que se estabelecesse imprensa no Brasil, sen-
do, em virtude da mesma carta regia, destrui-
da a unica tentativa de officina typographica
existente no Rio de Janeiro !
Carta regia de 30 de julho de 1766 man-
dou destruir todas as officinas de ourives exis-
tentes em Minas, prohibindo que taes opera-
rios se installassem na capitania e ordenando
que todos os officiaes e aprendizes desse offi-
cio assentassem praga nos regimentos colo-
loniaes.
Por aviso da mesma data ao governador
da capitania, mandava o Conselho Ultrama-
VINTJS E UM D15 ABRIL 29T
rino dar a Onofre da Foiiseca Neves o em-
prego de tocador de foUes da Casa de Fundi^
9ao de Villa-Rica. Ate um simples tocador de
folles tinha de ser nomeado em Lisboa! A^
tyrannia, quando se afasta do tragico, tern*
desses aspectos grotescos . . .
Em 1756 (1 de agosto), come9ou em Mi-
nas a arrecada9ao do chamado subsidio litte-
rario, destinado a reconstruir Lisboa, devas-
tada pelo terremoto do anno precedente. Fi-^
cou expressamente declarado que essa arre-
cadagao seria apenas por dez annos. Pois ate
pouco antes da nossa Independencia, apezar
dessas declara96es, ate o principio do secula
XIX, ainda se arrecadava em Minas o subsi-
dio litterario para reconstruir Lisboa! \5vn
quadro parcial, de que tratam as Ephemeri-
DES, demonstra que so no periodo de 1758 a.
1779 foi arrecadada e remettida para Lisboa
a importancia ouro de 1.030:705$366.
Ahi estao alguns dos motivos historicos^
que todos temos (principalmente nos os mi-
neiros), para sermos amicissimos dos nosso&
irmaos, os portuguezes. A elles devemos^
tudo : a industria, a agricultura, a instrucgao,
o commercio, a imprensa, tudo, tudo. Joao de
Barros e o curiboca dissorado Joao do Rio saa
dessa opiniao . . .
Incidente litterario
(Aossrs. Roberto Gomes e Goulartde Andrade)
AmigosI — Voces sao ambos immensos !
Conseguiram arranjar, em plena guerra, um
incidente litterario !
Desculpem-me intrometter-me nessapen-
dencia d'honra. Nao posso sentir barulho na
Republica das Letras, sem entrar tambem
nelle. Nisto sou um pouco como aquelle Joao
Foga9a, o capitao do matto das Minas de
Prata, o qual, ouvindo retinir de espadas num
recanto, certa noite de ciumada, parou, escu-
tou um pouco e grunhiu : « Ahn ! Briga-se por
aqui ? . . . » E brigou tambem, apenas para
distrahir-se ... K' o meu caso : entediado de
patriotismo, resolvi conversar com Voces a
respeito do incidente litterario. Si Roberto
plagiou, no Declinar do Dia, o Assump^ao
de Goulart, isto nao interessa nem ao paiz
nem ao Paraguay. O que interessa aos psy-
300 VERDADES INDISCRKTAS
chologos e a candura de ambos : Roberto, de-
fendendo-se de ter plagiado Goulart ; Goulart,
achando que Roberto, si nao o plagiou, teve
comelle a urn encontro nasituagao dramatica»
das pegas d'ambos; afeliz, alids, continua
Goulart, com ver que o meu notavel confrade
houvera dado a mesma solugao ao conflicto
psychologico deque trataramos.» Apenas, ne-
nhum de Voc^s ignora que esse conflicto psy-
chologico, que ambos resolveram, jatinha sido
resolvido ha muito tempo, quer na theoria,.
quer na pratica. . .
Voces precisam de deixar de tomar a lit-
teratura a serio. Fagam como Bilac, que
adheriu as phalanges patrioticas, e assim
vae vivendo optimamente, louvado Deus^
apezar de ter, segundo opiniao corrente, pla-
giado Stecchetti. Fagam como o commenda-
dor Paulo Barreto, que tem sido accusado de
plagiar a vida inteira Jean Lorrain, e nunca
se defendeu — o que nao o impede de ganhar
a sua vida maravilhosamente bem, e ate de
ser amigo intimo do Sultao da Turquia. Fa-
gam como o conselheiro Ruy Barbosa, presi-
dente da Academia, accusado de plagiar o
diccionario de Larousse, sem nunca procurar
defender-se. Tantos outros, tantos... S6 nao
ponho aqui Shakespeare, Goethe, Racine e
INCIDENTS LITTEKARIO 301
Moli^re, porque, sendo eu profundo respeita-
dor dos genios, nao me atrevo a mistural-os
com a litteratura nacional ; e nao ponho aqui
escriptores portuguezes, porque, sendo eu
profundo respeitador da litteratura nacional,
nao ouso confundil-a com a lusitana.
Isso de dizer que os outros nos plagiam
e ridiculo. E' balda de Hermes Pontes. Este
microscopico cravo das ferraduras do Pegaso
esta convencido de que voce, 6 Goulart, e
todos OS demais poetas nacionaes nao fazem
mais nada sinao plagial-o. Imagine, 6 Goulart,
a sua Ballada de Pierrot . . . imitada do so-
neto do Bromill
^ E agora, filhos, adeus ! Sejam felizes e
tenham juizo. Deus os abengde. Fagam as
pazes, porque nao e serio estarem os amigos
empenhados nesse conflicto singular em que
um se defende de ter plagiado, num drama
que ninguem viu, um romance que ninguem
leu . . .
O descobrimento do Brasil
Hontem, no pardieiro intitulado Theatro
Republica, perante numerosa assistencia com-
posta exclusivamente de patricios seus, o feste-
jadissimo poeta portuguez, sr. Joao de Barros,
descobriu mais uma vez o Brasil.
Dos portuguezes que por ca tem vindo,
desde o infausto anno de 1600 ate hoje, o
unico que verdadeiramente nao descobriu o
Brasil foi Pedro Alvares Cabral .
Por duas especies de motivos digo eu
que Cabral nao descobriu o Brasil : por moti-
vos historicos e pela significa9ao moderna da
locugao descobrir o Brasil.
Quanto aos motivos historicos, e sabido
que Gabral foi no seu tempo um dos ultimos a
conhecer o Brasil . Antes delle ca haviam es-
tado Diogo de Leppe, Solis, Yanez Pinzon e
outros que infelizmente nao tiveram a inicia-
tiva de tomar posse da nova terra para a cd'
304 VERDADES INDISCRKTAS
r6a da Franga ou para a cor6a da Hespanha .
Nessa nao caiu Cabral, que, capitaneando um
punhado de corsarios, que iam entregar se a
lucrativa industria da pirataria nas costas india-
nas, tanto que avistou terra, mais que depressa
desceu e aqui plantou o marco portuguez. E'
este o seu unico merito ; pelo que, si os portu-
^uezes devem venerar a memoria de Cabral,
que Ihes deu no passado uma rica possessao,
<ie cujos recursos ainda hoje exclusivamente
vivem, os brasileiros nao tern nenhuma razao
para tanto. Nos brasileiros so devemos vene-
rar a memoria dos nossos heroes: Calabar,
trucidado pelos portuguezes em 1635; Phi-
lippe dos Santos, esquartejado em Villa Rica,
por ordem dos portuguezes, no anno de 1720;
Tiradentes, enforcado e esquartejado no Rio
de Janeiro, no anno de 1792, em virtude da
sentenga da al9ada portugueza : Frei Caneca,
o padre Miguelinho, o padre Roma e outros
patriotas fusilados pelos portuguezes em Per-
nambuco e na Bahia, no anno de 1817 ; Clau-
•dio Manoel da Costa, assassinado na prisao
{Inconfidencia Mineira) entre 1789 e 1790;
OS que morreram nas masmorras do Limoei-
TO e da Junqueira, assim como nos d^gre^ios
da Africa, expiando o crime de terem amado
a sua patria. A memoria destes e que deve-
O DESCOBRIMENTO DO BRASII, 305
mos venerar, e mais a dos vencedores da In-
dependencia e da Regencia : Gongalves Ledo,
Antonio Carlos, Martim Francisco, Jose Bo-
nifacio, Evaristo da Veiga e, acima de todos,
o grande padre Diogo Feijo, o Regente
de Ferro, verdadeiro plasmador da unidade
nacional, cuja memoria deve seragitada como
uma bandeira de guerra. Veneremos no mes-
mo piano em que estiver Diogo Feijo o ma-
rechal Floriano Peixoto, cuja espada e^uja
serena energia souberam manter a unidade
nacional nos agitados primeiros tempos da
Republica. . .-
Voltemos, porem, ao nosso intento. His-
toricamente, Cabral nao descobriu terra ne-
nhuma por aqui ; apenas apoderou-se de um
territorio incluido entre os descobrimentos de
Colombo (por ter sido este o descobridor de
todo o continente americano) e positivamente,
directamente ja descoberto por outros, como
Solis, Pinzon, Leppe, etc.
Em virtude da significa9ao moderna da
locugao descobrir o Brasil, tambem e evidente
que Cabral nao nos descobriu.
Cabral, com effeito, depois de tomar
posse do Brasil e de ter ido a India, (onde
praticou a bravura de destruir com artilharia
grossa algumas chalanas malabares, feitas de
20
306 VERDADES INDISCRETAS
vime e de madeira fragillima) voltou a Portu-
gal, onde, depois de receber alguns premios,.
viveu e morreu tao obscuramente, que, so de-
vido a esforgos de um brasileiro (o dr. Al-
berto de Carvalho),se descobriu o seutumula
no seculo XX. De sorte que o Brasil pouco
aproveitou ao navegador. Nao e isso, pois,.
que se chama descobrir o Brasil, como se vae
ver.
Descobrir o Brasil e fazer como Malhei-
ro Dias, que, depois de insultar-nos no seu
livro A MuLATA e de terfugido para Portugal,,
para ca voltou annos depois, estabeleceu-se
com fabrica de unguentos e pomadas, de so-
ciedade com uma polaca sua amiga, e toca a
levar vida regalada !
Os irmaos Monjardino, medicos, aquf
vieram em visita, diziam elles. Foram recebi-
dos na Sociedade de Medicina ; tiveram ban-
quetes, discursos e retratos nos jornaes. Apa-
nhado esse vasto e excellente reclamo feito a
custa da ingenuidade dos seus coUegas brasi-
leiros, que pensavam estar rendendo home-
nagens a simples visitantes illustres, um dos
Monjardinos voltou para Lisboa, mas o outro,
mais pratico e esperto, gostou tanto deste
paiz, que resolveu ca montar consultorio e fez
muito bem, pois como ja dizia o seu patricia
O DBSCOBRIMENTO DO BRASIIv 307
Pero Vaz Caminha, a a terra he em tal maney-
ra graciosa que em se querendo nella se dari
tudo», inclusive a arvore das patacas. . .
Descobrir o Brasil e finalmente fazer
como o dr. Joao de Barros, que nos conta, a
respeito da nossa terra, coisas de que nunca
ouvimos fallar. Ainda hontem nos dizia elle ,
com o seu sibilante sotaque alfacinha, que no
Rio de Janeiro «a intelligencia, o talento e o
genio tomam as mais fascinantesf6rmas». Ora
ahi esta uma grande novidade para nos, por-
que a intelligencia aqui e relativa, como em
toda a parte ; o talento e rarissimo ; quanto ao
genio, ainda esta por apparecer, a nao ser que
o sr. Barros nos tenha trazido ahi um pouco
da mercadoria nalgum barrilote d'ovos
moll's d'Aveiro.
Nao contente com isso, disse ainda o
consagrado litterato, que no Rio de Janeiro
«o mar tem o riso fresco das boccas novas das
mulheres e a eterna alegria do riso alacre dos
deuses pagaos)). Isto agora e asneira e grossa.
Pode ser que em Lisb6a esse palavreado so-
noro ainda seja muito b6a litteratura, mas
aqui no Rio, nao. Mar que parece bocca de
mulher e riso dos deuses ao mesmo tempo,
isto e mar androgyno, macho e femea simul-
taneamente, mar Ganymedes, cujos recondi-
308 VERDADES INDISCRETAS
tos mysterios so o dr. Joao do Rio nos po-
dera explicar . . .
Finalmente mestre Joao de Barros en-
cerrou a festanga com dois berros a portu-
gueza : Pelo Brasil / Por Portugal! A mim
quer-me parecer que esses senhores adeptos
da recolonisagao do Brasil pelos portugue-
zes (pelourinho, forca, fusilamentos, esquar-
tejamentos, prohibi^ao de abrir estradas, es-
colas, bibliothecas, etc.) esses senhores estao
exaggerando as coisas com essa gritaria Por
Portugal! Nosnao ^^^^vcios^xxx.'ax Por Portu-
^^/,porque amanha pode um italiano exigir que
gritemos Pela Italia! Um allemao pode querer
que gritemos Pela Allemanha! E qualquer
prostituta franceza do becco dos Carmelitas,
com eguaes direitos a nossa approxima9ao,
podera pedir-nos um Pour la Frrrance ! e nao
havera quem Ih'o negue ...
Quanto a nos, os que conhecemos ahis-
toria dos martyres da nossa liberdade; que
temos sempre presente a memoria dos agou-
tados, dos roubados, dos degredados, dos
empobrecidos, dos fusilados, dos enforcados
e dos esquartejados por ordem dos portugue-
zes, nos e que nunca havemos de gritar Por
Portugal ! — nem que nos rachem ao meio !
Guiiherme Ilea psychologia
do heroismo
Quern olha de relance para a tragedia
europea tern a impressao hallucinante de assis-
tir a resurreigao de todo o paladinismo medie-
val. A figura de Guiiherme II culmina no
scenario gigantesco. O phenomeno nao e
inexplicavel. No meio de tantos reis que se
combatem e de tantos heroes puros que torn-
bam sob as cupolas dos fortes, ou nas anfra<
ctuosidades dos desfiladeiros,esmagados pelas
cargas de cavallaria, ou pulverisados pela gra-
nada, cada um de nos so parece divisar, como
uma visao tremenda, o capacete reluzente do
Kaiser. E' que a Allemanha se interpoz entre
o sol e o planeta ; e todas as aspiragoes, to-
das as virtudes, todos os defeitos, todas as fa-
Ihas e todas as grandezas da ra9a germanica
repontam nessa figura extraordinaria, que,' no
caso, representa uma synclinal.
310 GUILHERMB II E A PSYCHOI.OGIA DO HEROISMO
Dizem que os allemaes o adoram. O
facto e comprehensivel. Elle nao e apenas um
imperador, mas antes de tudo um homem com-
pleto para o seu meio e para a sua ra^a. Con-
substanciam-se nelle todas as estratificagoes
ethiiicas qije formam o patrimonio de f6r9as
inalienaveis do seu povo. Esse idealismo quasi
morbido, que tern o seu maior expoente no
transcendentalismo de Kant ; esse espirito de
universalidade, de amplidao mental, de vasta
capacidade psychologica, tendendo para a in-
tegragao da alma germanica na alma humana,
que se corporifica no Fausto, de Goethe ; a
hallucinagao grandiosa,empolgante,dos heroes
wagnerianos, no que elles possuem de mais
assustador para as aggremia^oes ethnicas or-
ganicamente fracas e incompletas como nos;
esse mysticismo messianico a Klopstock; essa
ausencia absoluta de escrupulos quando esta
em jogo o que para os allemaes e 2i grandeza
da p atria \ — tudo isso, que forma as linhas
geraes da sensibilidade germanica, sae da es-
phera das abstrac^oes e recebe um corpo, uma
figura e uma realidade na pess6a de Guilher-
me II. E' um espelho onde se mira cada alle-
mao. E' um espelho e uma synthese, synthese
grandiosa, mas excessivamente dramatica e
infinitamente perigosa para o mundo. Porque
VERDADES INDISCRETAS 311
o mundo e tambem uma synthese onde con-
correm muitas qualidades que naose ajustam
«, pelo contrario, se contrapoem a synthese
^ermanica. Nao podem, pois, coexistir no
mesmo ambiente duas syntheses que se con-
tradizem. Uma tern de desapparecer, e de
certo nao sera a synthese universal que ha de
ceder o terreno a synthese individual . . .
Mas sera um Heroe ? No tempo de Car-
los, o Temerario, ou de Ricardo, Coragao de
Leao, Guilherme II teria sido a personificagao
mais vivaz do paladinismo. Hoje, em vez de
encontrar na Borgonha a espada victoriosa do
Temerario, elle encontra tropas republicanas,
que fazem a guerra corajosamente mas pro-
testam contra ella em nome da Paz. E na In-
^laterra, em vez de um Cora9ao de Leao, en-
contra Jorge V, filho de Eduardo, o Pacifico.
<^ue faz a guerra, mas protesta tambem em
nome da Paz. O proprio Tzar, o autocrata, o
chefe dos cossacos e das hostes ruthenas, tam-
bem protesta contra a guerra em nome da
Paz ! Da Franga, finalmente, onde governa
um que nao foi armado cavalleiro, partem
protestos em nome da Paz. Presidente da
Franga, Rei da Inglaterra, Imperador da Rus-
sia, Rei da Belgica, todos a uma atiram contra
Guilherme a responsabilidade da guerra. E
312 GUILHERME II E A PSYCHOI.OGIA DO HEROISMO
Guilherme, que nao tern mede de exercitos,
amedronta-se deante de uma abstrac9ao — a
Paz, e deante de uma creagao da imaginativa
humana — o juizo da Historia. E' um herde,
mas heroe incomplete no sentido militaresco .
Sob a accusagao de ter provocado a guerra (e
por emquanto e difficil fazer com equanimi-
dade uma exacta distribuigao de responsabili-
dades) Guilherme da-se pressa tambem em
mandar pedir a baciade Poncio Pilatus e lavar
as suas imperiaes maos . . . Isto quer dizer
que nenhum desses paladinos tem ja a guerra
em grande estimagao. Todos elles, que sao
de nascenga generaes e almirantes, desesti-
mam as batalhas. Sao todos pacifistas incuba-
dos, o que quer dizer que o heroismo militar
estci morto. Ha dias notava isto o sr. Teixeira
Mendes num artigo-pastoral. Que differenga
entre Jorge V e o rei Arthur ! Alguns seculos
atraz,o actual rei da Inglaterra seria tido como
menos digno de fazer parte da nobre compa-
nhia dos Cavalleiros daTavola Redonda. Nao
e um paladino : e um legista. Guinevra nao
se dignaria de ser a estrella dos seus comba-
tes. . .
E Guilherme? Que distancia immensa
entre os seus avoengos scandinavios e este
her6e cujo cerebro, de permeio com imagens
VKRDADSS INDISCRETAS 313
de batalhas e sangueiras, tern dentro de si o
cortejo das abstracgoes aprendidas na convi-
vencia dos sabios ! Badur, rei de Upsal, dizia:
«Nada espero dos idolos. Corri a minha parte
paizes varies ; encontrei espiritos e gigantes
que nada puderam contra mim ; e, pois, nas
minhas f6r9as que confio unicamenteU Lod-
brog, prisioneiro do saxonio OElla, langado
numa caverna cheia de viboras, ent6a altiva-
mente o seu canto de mortem que os Eddas
nos conservaram ! Morrendo, elle exclama na
sua alegria barbara: «EisasDysasque Odino
enviou para me conduzirem ao seu reino .
Alegre me vou com os Ases beber o hydromel
nos cimos supremos. Passaram as horas da
minha vida e eu sorrio a morte !>>
Jnvitant me deae
Quas ex Othini aula
Othinus misit mihi.
Lsetus cervisiam cum Asis
In' summa sede bibam.
Vitae elapsae sunt horae,
Ridens moriar . . .
Siegfried, de todos os heroes de Wagner
o que mais amava Nietzsche, e o heroe com-
plete, G admiravel desprendido, que nunca
sentiu as suggestoes do medo. Guilherme,
314 GUILHERMB II E A PSYCHpLOGiA DO HEROISMO
que affronta legioes e desafia povos, estre-
mece ao lembrar-se . . . de que? De um ca-
lamo, de um estylete com que um homem
tranquillo, no silencio da sua mansarda, tera
de commentar um dia os altos feitos de Gui-
Iherme. Ve se a larga distancia que separa
dosseus avos este neto de deuses. E' possivel
que Wottan nao o reconhecesse e que Siglinda
nao o distinguisse. Brunhilda talvez nao qui-
zesse ser despertada por elle , . .
Os pensadores devem estar consolados
no seu ponto de vista, apezar dos horrores
desta guerra. Todos os que a fizeram de-
clararam-na uma calamidade. Detestam-na.
Mas fazem-na, dirao ! Sim, mas amanha, quan-
do o espirito dos chefes dos povos estiver bem
saturado das novas philosophias e ardente-
mente convencido dessa transforma9ao de va-
lores pela qual a Paz sera o titulo mais glo-
rioso das nagoes, quem sabe si as guerras nao
cessarao ? O ultimo heroe militar germano foi
o velho Moltke, que dizia ser a guerra «uma
santa instituigaoB ! Guilherme II, quarenta
annos depois, acha-a tao detestavel, que afasta
de si, e com razao, a responsabilidade della
perante a Historia. Daqui a mais quarenta
annos, si houver ainda reis, talvez sejam muito
VBRDADES INDISCRBTAS 315
maiores os esforgos que envidarao para evitar
as guerras. Porque a maior gloria do futuro sera
poder augmentar a riqueza, o conforto e a
grandeza das patrias pelos instrumentos da
Paz e do Trabalho.
A crapula
Terminado no jornal o meu trabalho de
orientador da opiniao a tanto por dia, fui do-
mingo passado a um club. Nao se esque9am
de que o domingo passado foi de Carnaval .
Eram quasi duas horas da manha e chovia a
cantaros, uma chuva barbara, dessas que de-
vem castigar as cidades malditas, inundando-
as a trombas diluvianas e transforman do-as
em lagos de orgulho e lama . . .
Subi. No salao, banhado de uma luz
crua de meio dia tropical, e que habitual e si-
multaneamente serve de salao de baile, de
restaurante e de espelunca de jogo, premiam-
se pares afrancezadamente cynicos, que dansa-
vam tangos argentinamente acanalhados e
maxixes nacionalmente debochados. Pierrots
de cara branca, deixando adivinhar, por debai-
xo do creme de que tinham rebocada a epi-
derme, o cansa90 moral de uma gente pollu-
318 VKRDADES INDISCRETA-S
cionalmente exgottada antes de attingir a pu-
berdade, dansavam com pierrettes cansadas
como ladras que correram um kilometro per-
seguidas pela policia, ou com abandalhadas
colombinas que traziam estampada na flacidez
do sorriso mercenario a fadiga das insomnias
estereis e das orgias remuneradas . . .
Cinco ou seis ratoes vestidos de verme-
Iho, espremidos entre um piano e a turba, exe-
cutando maxixes puramente intencionaes ou
tangos hypotheticos, de facto imitavam nas
cordas dos sens violinos vozes de animaes
de especie varia. Os violinos, que nas maos
de Kubelick ou de Vecsey, sao fontes de emo-
goes ethereas e irmanam as almas nas regioes
niveas do Ideal, nos gadanhos de zingaros de
clubs perdem as suas virtudes estheticas e
adquirem singulares propriedades de guelas
felinas. Nessa noite, por exemplo, si os zin-
garos estivessem occultos por detraz de uma
simples cortina, eu jurara que a malta dos fo-
lioes dansava ao som de miados de gatas no
cio e de rugidos de hyenas esfaimadas e en-
raivecidas.
Pelo ar empestado corriam ruidos de en-
sandecer e odores fulminantes, desde aquelle
cheiro que Fialho d' Almeida chamava/<?w^/«a
que e «o alcaloide sexual da femea avulsas,
A CRAPUI^A 319
ate as exhalagoes varias e intoxicantes com
que a industria permitte a humanidade embo-
tar a pituitaria, comtanto que se disfarce o far-
turn prenunciador dos feditos inadiaveis da
decomposigao , . .
Todas as mesas estavam occupadas. Fin-
gindo-se ^^^^^z^r^.exteriormente despreoccupa-
dos de tudo, mas intimamente combinando o
prego da pandega com a capacidade de resis-
tencia das carteiras, alguns fidalgos de sangue
suspeito e arrebentados pagavam cervejapara
Manons sedentas e sanduiches para Phryneas
famintas da Lapa, Gloria e Russell. Em tres
mesas apenas bebia se champagne. Essas tres
mesas eram occupadas por illustres cavalhei-
ros que devem orgar pelos sessenta e cuja
unica celebridade, perante os vertebrados em
geral e a especie humana em particular, con-
siste nas passadas fa9anhas amorosas das es-
posas, hoje aposentadas em avos que distri-
buem pelos netinhos as lambugens de caricias
que OS amantes de outr'ora Ihes deixaram nos
coragoes desilludidos, mas nao saciados...
Passei pelo meio da farandulagem maxi-
xante como uma penna da ave Melancolia
levada ao leo por um tufao. Acotovelado e
acotovelando, abalroado pela esquerda e abal-
roando pela direita, aos boleos e trambulhoes.
320 VBRDJIDBS INDISCR^AS
dando umbigadas em rebolantes nalgas, e ca-
nelladas acutilantes emcadeiras desgarradas,
sempre consegui chegar ao fundo da sala, a
parte propriamente destinada a servir de es-
pelunca de ladroes. O jogo estava esmorecido.
Os pharoes nao conseguiam seduzir papalvos.
Entre a sota e a mulher o imbecil verdadeiro,
o imbecil integral, deixa-se apanhar sempre
pela ultima. Ora, naquella noite as mulheres
esvoa9avam como cardumes de vespas em
tardes estivaes, atrevidas e picantes. Alem do
mais a attrac9ao do maxixe e, entre nos, su-
perior a attracgao do baccarat. O jogo e vicio
de decadencia. Comprehende-se o dominio
da batota na Europa, onde a civilisa^ao ja co-
mega a deseer a outra vertente da montanha,
onde boceja uma raga saturada de crapula, de-
vastada por guerras, exhausta por orgias se-
culares. fatigada de aventuras, raga que ja
inventou tudo, viu tudo, fez tudo quanto se
pode fazer de bem ou de mal, sentiu tudo
quanto se pode sentir de delicioso ou de des-
agradavel, raga velha e gasta, que esta a de-
lir-se como as carnes de um cadaver numa cal-
deira ardente, de onde sairao apenas os ossos
a servirem de objecto de estudo para a moci-
dade nos amphitheatros de anatomia.
A CRAPUi:.A 321
Nas terras ainda Barbaras como a nossa
o JGgo 6 grandeseduc9ao quando nao existem
seducgoes maiores. No dia em que reina o
maxixe debilitam-se os creditos da jogatina .
Ainda nao somos dissipados, por nos
minguar a moeda, e ainda nao somos devassos,
porque nossobeja juventude. A devassidao e
mais da velhice do que da mocidade. A mo-
cidade e precipitada e gozadora. Nao precisa
de ser devassa, porque traz ainda no sangue a
idrqa e o impeto das profundas sensualidades.
Agradam-lhe todos os estrepitosos e audazes
prazeres da vida destra : o desporto, o baile,
as corridas, o maxixe e todas as choreas des-
bragadas. Diversao que nao fatiga nao alegra
a mocidade. Explica-se dest'arte a seducgao
physiologica do maxixe sobre o brasileiro,
povo mo90. As distensoes musculares dos
membros inferiores; os movimentos quasi
arythmicos; os passos accelerados pela ca-
dencia lesta da canalhesca musica afro-ameri-
cana ; o desregramento das attitudes fecundas
tm imprevistos ; a possibilidade de ostentar
aos olhos de tanta gente uma mulher em po-
si^oes pouco plasticas e muito equivocas —
tudo isso nos encanta ao mesmo tempo que
nos satisfaz o appetite de ruido e ostentagao.
21
322 VERDADES INDISCRKTAS
A nossa ausencia de bom gosto enquadra-se
admiravelmente dentro da canalhice barbara
do maxixe.
Si nao existisse nem um so documento-
historico da epoca, bastava um miniiete para.
reconstituir toda a pbysionomia social do se-
culo XVIII. Si se perdessem todos os monu-
mentos historicos do Brasil actual (e o prejuiza
nao seria grande), bastaria a copia de um ma-
xixe e a photographia de um carro carnava-
lesco para que se reconstituisse a nossa pby-
sionomia reles, tal como por uma synclinal se
reconstitue todo um periodo geologico.
O maxixe da bem a idea das nossas bai-
xas tendencias musicaes e choreographicas .
Um carro carnavalesco e a medida precisa da
nossa ausencia de imaginagao e da monstruo-
sidade carthagineza do nosso mau gosto . Si
contarem la f6ra que no Rio de Janeiro uma
popula^ao inteira vem para a rua applaudir
phreneticamente carros que so valem pelo ta-
manho desproporcionado, hediondos como
cavernas paleontologicas, representando sem-
pre OS mesmos dragoes mambembes, as mes-
mas conchas de ha cincoenta annos, as mesmas
moedas de ouro... de papelao dourado, e os-
tentando annualmente, com rigor mathema-
tico, as mesmas toneladas de niulheres gordas
A CRAPUI^A 323
como polacas de exportagao, feitas de propo-
sito para excitar a cubiga conimercial dos a9ou-
gueiros e o appetite profissional dos magare-
fes, difficilmente acreditarao que tal cidade
tenha a pretensao de passar por civilisada e
queira ser tomada a serio pelo estrangeiro ci
vilisado, orgulhoso e suspicaz.
Mas, depois de vinte minutos de club, a
cabega nos anda a roda, como si tivessemos
turbinas no craneo. Affrontei,pois, novamente
a onda revolta dos bailarinos, atravessei-a em
lucta corpo a corpo, trazendo, nos tympanos,
echos desencontrados, e nas retinas, fulgores
intermittentes e relampagos violaceos. Ganhei
a rua alagada pela chuva, e, meditando coisas
truculentas contra a Humanidade e invecti-
vando mentalmente August© Comte, seu
Propheta, comecei de chapinhar novamente a
lama carnavalesca da Avenida . . .
Um caso de poticia
Chama-se a attengao da Policia para os
factos que se passa a relatar :
Ha poucos dias, no Caes do Porto, um
pobre homem comprou um jornal; assentou-
se a um pedral e comegou a ler ; de repente
poz-se a tremer e a espumar,emquanto os olhos
pareciam querer fugir-lhe das orbitas. Estando
elle nesse estado, acertou de passar por ali um
rapaz que Ihe perguntou o que elle tinha; o ho-
mem fitou o seu interlocutor, agarrou-o pelo
pescogo e provavelmente o enforcaria si prom-
pta intervengao da patrulha policial nao ata-
Ihasse opportunamente tao grande desatino .
Durante todo o tempo em que travou
luta corporal, berrava o pobre homem para a
sua victima :
— Voce e o Austregesilo ! Voc6 e o dou-
tor que escreve nos jornaes ! Eute mato, ban-
326 VBRDADBS IMDISCRSTAS
dido ! Pelo sangue dos meus filhos, eu te en-
force ! Eu quero matar o dr. Austregesilo !
A muito custo foi subjugado e conduzido
at^ i. delegacia proxima, de onde nao se
sabe que destino Ihe terao dado; mas e pro-
vavel que esteja a estashoras no Hospicio,tal
a violencia do seu accesso de loucura.
Ahi tern o dr. Chefe de Policia o que
pode produzir a liberdade com que certos in-
dividuos abusam do direito de ser nocivos.
O dr. Antonio Austregesilo e um desses
criminosos, dignos nao s6 das masmorras como
de um violento requisitorio do senador Ruy
Barbosa. O caso aqui citado de loucura san-
guinaria nao 6 o unico ate agora provocado
pelos artigos do eminente professor. De ou-
ttos sei eu qiie t^m ficado escondidos por
anlor das victimas, que pertencem a familias
de destaque. A in da ha poucos dias, duas se-
nhoritas residentes em Copacabana foram,
logo depois do jantar, acommettidas de coli-
cak tao terriveis, que toda a gente aventou
logo ahypbthese de um envenenamentb. Qu^-
riiam at^ responsabilisar o cosinheiro da casa
e 6 vendeiro portuguez em que se fornece a
familia. Afinaj, chamada a Assistencia, verifi-
cou o medico da ambulancia nao se ti^atar de
nenhum envenehamento. Examinados os ge-
UM CASO DE POUCIA 327
Tleros alimenticios que havia na dispensa, fi-
-cou provado serem de b6a qualidade ; e o seu
prepare nada deixava a desejar. Alids, si a
intoxica9ao proviesse da ingestao de ali-
mentos deteriorados, naturalmente toda a fa-
milia teria manifestado os mesmos symptomas
de doen^a que as senhoritas.
— E' exquisite, pensava o medico. Os
alimentos estao perfeitos. Estas meninas cos-
tumam ter destas colicas ?
— Nao, doutor, e a primeira vez, res-
pondeu a mae das pequenas.
— E . . . insistiu o medico, concertando
OS oculos severos e fusilantes de sciencia:
"^^ • • •
Aqui elle fez a mae uma pergun^ em
voz baixa, a qual respondeu a digna senhora,
^nrubecendo levemente :
— Ah 1 nao, senhor ! Sao at^ muito re-
Sfulares . . . Sao muito sadias estas meninas .
Este mez ja tiveram ...
— E' extraordinario. Nao posso sXimr:..
Caso grave . . . Nao me parece nada mau cha-
mar um gynecologista.. .
Pensando e repensando, cairam os olha-
res do medico sobre um diario que estiiva es-
tendido em cima da mesa grande da sala de
328 VERDADES JNDISCKBTAS
jantar. La estava um artigo intitulado — O
Silencio — e subscripto pelo dr. Austregesilo^
— Ah! exclamou o doutor. Aqui esta
a causa. Jd podemos fazer a etiologia do maL
Fa9amos o diagnostico e, si for o que eu pen-
so, o prognostico pode ser severo. Estas pe-
quenas sabem ler?
— Oh ! doutor ! De certo que sabem \.
— Leram este artigo ?
Interrogadas, responderam as pequenas
que o nao tinham lido todo, mas em parte.
— Pouco importa, disse o illustre facui-
tativo. Com muito menos do que isto morreu
Madame Bovary. Vou receitar-lhes um pur-
gante fresco e uma fomentagao para a regiao
umbilical.
E com effeito, tomado o purgante e es-
coado o effeito do mesmo, come^aram as gen-
tis enfermas a melhorar; e ficaram inteira-
mente boas depois da fomentagao nos genti-
Hssimos umbigos.
Ahi tem o dr. Chefe de Policia o periga
social que representa um artigo de Austre-
gesilo.
No tal artigo, que provocou as colicas nas
senhoritas, ha trechos assim :
O silencio d uma voz em perspeUiva^
como qualquer idea constitue um acto nascente .
UM CASO DK POI^ICIA 329
Em torno delle gyra um mundo infinito
de pequenos sons, como as diminutas linhas re-
das que formam a circumferencia.
Como e que podera haver uma voz ep
perspectiva ? E um mundo de pequenos sons
a gyrar em torno do silencio ? E a circumfe-
rencia formada por pequenas linhas rectas ?
Vejam o que elle diz da morte :
Dizem que a morte e o symbolo exact o
do silencio. Mas morte e o microbio e o verme,
a desagregagdo molecular.
A alma, affirmam, voa ; voa por longe;
mas alguemy no mundo, Ike percebe o ruflar,
pelo murmurio da dor dentro dos coragoes, pelos
presagios telepathic os cujos soidos quasi insensi-
veis constituent as nenias das saudades, a har-
monia dos soffrimentos, a dogura das reli-
gions.
Este sujeito, segundo ja esta verificado,
tem a exquisita mania de insultar a morte .
Para elle a morte e o microbio, e a alma voa,
mas toda a gente Ihe percebe o ruflar das azas
pelos presagios telepathicos que sao as nenias
das saudades, etc., etc..
Tudo que ahi fica demonstra a saciedade
que este clinico e ummalfeitor publico, «cari-
franzido e barbilongos como diria o senador
Ruy.
330 VBRDADBS INDISCRETAS
Naio queremos citar mais. Si houvesse
policia no planeta, o dr. Austregesilo ]i teria
sido ha muito tempo trancafiado num xadrez
cheio de chismes, palavra que vimos pela pri-
meira vez no ultimo discurso dosr. Ruy e que
significa percevejos. Ate quando, 6 Polida,
deixards impune o dr. Austregesilo, o grande
delinquente das letrias patrias?
O coronel Roosevelt
Morreu Theodore Roosevelt, dizem os
telegrammas.
Grande estadista, commentam os jor-
naes.
Grande cabotino, opinam homens sen-
satos.
Doutor em direito, vaqueiro, deputado,
presidente da Republica, cagador de feras, co-
ronel de cavallaria, este cidadao foi antes de
tudo um virtuoso norte-americano, isto 6, um
cabotino feliz. Foi o maior fiteiro do seculo.
Nos nos orgulhamos do sr. Nilo Pe9anha
como fabricante de fitas de grande metragem;
mas o sr. Nilo 6 um ingenuo, comparado com
Roosevelt. . . Ha entre um e outro a distan-
cia e a differenga que vao de Campos a Nova-
York. . ^
Roosevelt nao deixava de ter certas ana-
logias de caracter com Guilherhie 11. Eram
332 VBRDADES INDISCRETAS
ambos estupendos exemplares de hypertro-
phia do Eu, Guilherme queria dominar o
mundo ; Roosevelt teria dominado toda a
America, si tal Ihe fosse possivel. Ambos ti-
nham a paixao das viagens, das cagadas, do
palco scenico perante o universo, avidez insa-
ciavel de reclamos. Viviam para as exteriori-
dades. Apenas, Guilherme era fidalgo de
raga ; Roosevelt era plebeu ; mas ambos se
egualavam pelas attitudes de arrivistas. O
desejo immoderado de gloria facil nivelava
perante a consciencia humana o neto de Fre-
derico II e o neto dos pelles-vermelhas. . .
Tendo mais liberdade individual do que
o imperador,Roosevelt organisava cagadas aos
tigres da India, aos leoes da Africa e as ongas
do Brasil ; tendo menos liberdade individual
do que o ex-presidente, Guilherme, nao po-
dendo ir cagar em dominios inglezes, organi-
sou essa formidavel cagada de animaes huma-
nos da qual Ihe adveiu a ruina.
Roosevelt esteve a cagar no Brasil. Ca-
90U doUares e ongas. Os d611ares cagou-os e
ganhou-os elle no Rio, fazendo no Institute
Historico uma conferencia sem o menor valor,
pela qual exigiu cerca de sessenta contos I
Nunca pagamos tao caro um pensador medio-
cre. Mas, que querem ? Esse homem tinha
O CORONEI. ROOSEVELT 333
atraz de si os Estados Unidos com o seu Ca-
pital, com a sua Industria, com a sua Esqua-
dra e com a impulsividade collectiva da sua
populagao sadia e rica. Nao seria prudente
ratinhar quanto ao pre90 da sua philosophia,
embora ella fosse, por natureza e por eviden-
cia, muitissimo barata. Imaginemos um va-
queiro (cow-doy yComo la dizem) phantasiado de
Emerson e teremos a synthese mental do pen-
sador Teddy.
Quanto as ongas, esse professor de ener-
gia foi ca9al-as no Amazonas. Dizem que elle
nunca tremeu deante dos tigres de Bengala ;
mas ha quem affirme que o Nemrod yankee
ficou horrorisado quando se viu no Inferno
Verde.
Eu acredito em ambas as versoes. Nao
ha que temer os tigres da India. Sao tigres
creados pelos inglezes especialmente para li-
sonjear a vaidade matadora dos Tartarins po-
derosos como Roosevelt. Sao animaes civili-
sados. Creio que alguns ate pertencem a Alta
Egreja Anglicana. Moram a beira de rios ex-
ploradissimos, cujas margens estao saneadas,
vigiadas, incorporadas definitivamente ao dis-
ciplinado Imperip de SuaGraciosa Majestade.
Ja nao succede o mesmo com as nossas
on9as e os nossos jacaresda Amazonia. Esses
334 VKRDADKS INDISCRBTAS
nSo vivem na doce companhia de Hindus
pantheistas, que aspiram ao Nirvana, como
felicidade suprema; vivem em florestas dan-
tescas, na companhia do indio astuto e do se-
ringueiro feroz. Por isso Roosevelt, que sd
mantinha rela96es com feras britanisadas, arre-
piou-se ao travar conhecimento com authenti-
cas feras brasilicas. E, durante todo o tempo
em que durou a sua ca9ada na Amazonia, elle
s6 alimentou e loucamente um desejo : o de
fugir, o maisdepressapossivel, d'aquelle som-
brio e espantoso inferno, onde, quem nao
morre da setta hervada do indio, nas'garras
da cangussu, entre os anneis constrictores da
sucury,ou triturado pelasmandibulas do jacar^r
ainda tem deante de si um inimigo mais sub-
til e perigoso : o impaludismo. E' preciso ser
cearense para affrontar a Amazonia; ora, Roo-
sevelt era apenas um norte-americano habi-
tuado a Quinta Avenida e que, vaqueiro na
sua mocidade, campeara o seu gado cavalgan-
do muito bons cavallos e por campos de doce
clima, apto a travar amizade com todas as de-
licias da Civilisa9ao. Haretratos de Roosevelt
matando tigres de Bengala ; mas nunca vi re-
trato d'elle a luctar com a nossa onga pintada
nem com um modesto jacare, desses em que
O COROMBI. ROOSBVKI.T 335
OS indios at^ chegam a montar para a atraves-
sar o rio Amazonas.
Homem sympathico pela sua robustez or-
ganica e pela alegria com que sabia viver, foi
um cabotino do mais alto bordo e, como de-
cidiram em Paris, em cerco concurso aberto
por um jornal, eratambem, com as suas con-
ferencias mediocres e suas ligoes de energia
muito bem pagas. o primeiro cacete do mun-
do. . .
Que e uma offensiva ?
Chama-se offensiva o acto pelo qual um
exercito se atira contra outro. Exercito e uma
multidao de hoinens que, esquecidos de que
sao homens, obedecem a toques de cornetas,
a rufos de tambores e a ordens de outros ho-
mens, tambem por egual esquecidos da sua
hominidade. Entre um exercito e um rebanho
a differen^a e nominal ; porquanto, si os reba-
nhos nao raciocinam, muito menos os exerci-
tos ; no dia em que os rebanhos raciocinarem,
deixarao de ser rebanhos ; no dia em que os
exercitos raciocinarem, tambem deixarao de
ser rebanhos ; porque, no dia em que cada
homem se convencer de que outro homem nao
tem o direito de perturbar-lhe a do9ura da
vida, para transformal-o em machina de matar
■e de morrer, esse outro homem, por sua vez,
nao tera coragem para Ihe propor que deixe
a fabrica, a famiHa, o gado, ou a charrua, afim
22
338 VBRDADBS INDISCRBTAS
de ir matar a oiitros homens que, como elle^
tambem possuem teares, filhos, gado e char-
ri^as. D'onde se conclue que os exercitos sSo
producto da inconsciencia humana explorada
pelo Capital. Exercito e Capital, que sao hoje
alliados, serao algum dia inimigos como o cao>
e o gate . Porque ? Porque a primeira victima
do Capital 6 o proprio Exercito. Os soldados
morrem para que ? Para sustentar os capitalis-
tas que se escondem sob a abstra9§o — Pa-
tria. Quanto ganha um general ^ Dois contos
por mez. Quanto ganha um capitalista ^ Cen-
tenas de contos, por mez. Quando morre uni
soldado raso, com quanto fica ao mez a sua
viuva, caso o Estado a sustente ? Com algu-
mas dezenas de mil reis. E a viuva do capita-
lista } Com algumas centenas de contos .
Mas como se faz uma offensiva ? Assim t
reunem-se muitos mil homens ; outros homens^
que saibam fallar, arengam deante d'elles, in-
vocando a Patria, o Direito, a Civilisa9ao e a
Humanidade. Depois de embriagal-os com
palavras, esses oradores, que geralmente saa
commandantes, fazem soar as trombetas. A
trombeta e um instrumento diabolic© que, so-
prado com certa arte e calor, actiia sobre a
systema nervoso dos individuos, tirando-lhes
a capacidade de pensar e de sentir outra coisa
QUE ft UMA OFFENSIVA? 339
sin^o barbarias gothicas. Os commandantes
dSo ordem de avan9ar, e os homens avan9am;
OS proprios cavallos, excitados pelos tangeres
bellicosos, avangam heroicamente ; os ho-
mens dao tiros de canhoes, metralhadoras e
carabinas sobre outros homens, que tambem
ouviram discursos, inebriaram-se com o clan-
gor das trombetas e dao tiros de canhoes^
metralhadoras e carabinas. Privados de senti-
dos e de intelligencia, intoxicados pela elo-
quencia dos generaes e pelo som das tubas
canoras, combatem; grande parte, num e nou-
tro campo, morre; milhares de outros, que
escapam, ficam estropiados, cegos, surdos,
inutilisados, mas contentes, porque recebem
uma tirinha de panno e uma cruzeta de qual-
quer metal, que nem ao menos e ouro. No
fim de tudo, uns consideram-se vencedores ;
OS outros, vencidos, mas nao convencidos da
derrota, preparam novo ataque, que se chama
contra-offensiva ; mas offensiva, defensiva e
contra offensiva vem dar tudo no mesmo : e
meio de perder a vida em beneficio dos fome-
cedores dos exercitos, quer de um quer de
outro campo. De maneira que offensiva quer
dizer : morte injusta ; e a principal arma offen-
siva e a palavra humana; tanto assim que
Ajax, filho de Oileu, dizia: «Antigamente eu
340 VERDADES INDISCRETAS
suppunha que a primeira arma era a acgao ;
agora vejo que a primeira arma e a palavra» .
Quanto ao fim da offensiva, e defender a Pa-
tria, isto e, a riqueza dos ricos e a liberdade
dos povos, por hypothese . . .
Christo ou Christa ?
Tem-se visto no Rio de Janeiro muita
coisa extranha. Faltava-nos, entretanto, assis-
tir ao que esta annunciado para a Semana
Santa: o papel de Christo, no Martyr do Cal-
vario, feito no Recreio por uma mulher, a
sra. Italia Fausta !
Dizem que a sra. Italia Fausta, quando
representava ali no Campo de Sant'Anna, era
admiravel no papel de Antigona, o que eu por
mim mesmo nao affirmo, porque nao o vi.
Dizem que S . Excellencia e admiravel na Rd
Mysteriosa — o que eu tambem nao affirmo, por
nao o ter visto. Dizem ainda que S. Excellen-
cia e admiravel em tudo — o que eu mais uma
vez deixo de affirmar, porque nao conhe9o a
illustre senhora nem em tudo nem em nada .
Para evitar discussao, admitto que ella seja
estupenda em scena e f6ra de scena, quer no
palco, quer nos bastidores; mas representando
342 VSRDADES INDISCRETAS
o papel de Jesus-Christo ? ! . . . Nao se deve
julgar do que ainda nao se viu ; mas, franca-
mente, nao ha emo9ao de espectador que re-
sista a estes pensamentos : «Aquelle Christo
que ali vae, de cruz is costas, ajudado pelo
dr. Gomes Cardim, quero dizer, por Simao, o
Cyreneu, e uma linda senhora; aquelles cabel-
los, porem, melhor diriam em Magdalena
do que no Salvador; aquella garganta 6
tudo quanto ha de menos masculino; e si des-
cermos pela garganta abaixo, verificaremos
que aquillo nao pode ser Christo nem a mao
de Deus Padre)) . . .
Assim pensando, iremos acompanhando
OS passos do Redemptor at^ o momento em
que elle houver de ser pregado na cruz. Ahi en-
tao 6 que hao de resaltar, com evidencia scien-
tifica, a luz forte das gambiarras, entre relam-
pagos de breu e trovoes de bombo, todas as
differengas anatomicas que ha, que pelo menos
devia haver, entre Jesus-Christo e a mulher de
Pilatus. E quando Maria Magdalena se ajoelhar
junto a Cruz, contrita, arrependida e lacry-
mosa, como Christo e femea, ficaremos nos a
conjecturar si por ventura aquella Magdalena
nao sera macho, para nao perturbar o equili-
brio do mundo . . .
CHRISTO OU CHRISTA? 343
Nao, minha senhora, tenha paciencia.
T^m-se visto homens a fazer de mulheres,
mas mulher transformar-se em homem, e
ainda mais — Homem-Deus, isso nunca se
viu, embora se digam por ahi certas coisas . . .
O nosso sexo 6 privilegiado. A quantidade de
linhas curvas que abunda nas mulheres bella§
permitte logo, a primeira inspecgao, distin-
guil-as immediatamente dos homens; portanto
a sra. Italia Fausta, quando for pregada na
cruz (felizmente com cravos posti^os), ha de
revelar-se mulher ate ao candido olhar dos
impuberes. E si quizer ser tida e havida por
Jesus-Christo, ha de recorrer a antiquissimos
« obsoletos processos de carpintaria theatral .
No tempo de Shakespeare, como a arte
scenographica ainda nao existia, quando em
scena se queria mostrar ao publico uma flores-
ta, coUocava-se no logar proprio um letreiro :
Floresta. Quando se queria figurar a lua, pen-
durava-se numa trave uma lanterna, com um
letreiro : Lua. Assim, a sra. Italia Fausta, si
nao quizer ser confundida com a mae de Sao
Pedro, devera apparecer em scena com um
letreiro na testa: Jesus-Christo. Ora, Jesus-
Christo, que nunca foi reo mysterioso, quando
apparece no theatro, mesmo no Rio, traz na
<cabe9a a sua famosa cor6a de espinhos, que
344 VKRDADES INDISCRETAS
provavelmente deve ser incompativel com
qualquer letreiro, ainda luminoso. Alem disso,
esse letreiro, por cima da cor6a de espinhos,
e uma crueldade tao inutil, que os proprios
judeus nao a praticaram .
Resumindo, cara sra. Italia Fausta, sup-
plico-lhe, tao humildemente como se fallasse
ao proprio Jesus-Christo, o seguinte : va ter
com o empresario e declare-lhe muito positi-
vamente que Vossa Excellencia, por motives
anatomicos, nao p6de ser Christo ; podera ser,
quando muito, Mae de Deus, mas nunca Fi-
Iho d'Elle. E si Vossa ExcellenM persistir
nessas intengoes, que eu reputo contrarias a
natureza e ao bom senso, irei ao theatro, na
Sexta-feira Santa, de gravata vermelha e bar-
rete phrygio, e farei berreiro para exigir que
Magdalen a seja o sr. Paulo Barreto.
Do leite, sua natureza e effeitos
na economia
Chama-se leite certo veneno de cor
branca com que se matam crian9as em ten-
ra edade e velhos em edade avangada. Em-
pregado em alta dose, pode ser de effeito
fulminante. Esta provado que os allemaes,
durante a offensiva na Belgica, nao emprega-
vam contra criangas e velhos outra arma
sinao o leite do Brasil, de que tinham com-
prado grandes partidas antes da guerra. O
leite, logo que e assimilado pelo organismo,
age directamente sobre todas as visceras . O
estomago do paciente dissolve-se ; os intesti-
nos desapparecem sob a acgao corrosiva de
certos acidos, ainda desconhecidos, que o leite
desenvolve no organismo humano; o coragao,
os rins, o figado e o bago liquefazem-se. Algu-
mas vezes, tanto na clinica hospitalar coma
na clinica civil, tem-se procurado salvar taes
346 VBRDADBS INDISCRETAS
doentes, empregando, quer por via gastri-
ca, quer em injecgoes endovenosas, solugoes
de bi-chloreto de mercurio, ou de cyaneto
de potassio em agua raz, a 95 % ; mas, apezar
disso, sobre cem casos de intoxicagao pelo
leite, noventa e oito sao quasi sempre fataes.
Na Santa Casa, logo que se tern noticia ou
simples suspeita de que um doente, desillu-
dido de cura, conseguiu ingerir is escondidas
uma colher de leite, applicam-se-lhe, caso o
permitta a sua tensao arterial, injec^oes intra-
musculares, consecutivas, de uma solu^ao de
sulfato de cobre misturado com chloreto de
zinco, ou arseniato de chumbo, na propor9ao
de 600 por 1000.
Ultimamente quiz a Hygiene Municipal
prohibir o commercio desse activissimo ve^
neno, ou ao menos regulamental-o como re-
gulamentou o da cocaina, do opio e da mor-
phina, permittindo o seu uso clandestino so a
adultos de ambos os sexos que nao tenham
muito interesse em viver; mas o juiz da 1^
Vara Federal garantiu por sentenga a liber-
dade desse nefando commercio. De sorte que
o leite continua a ser vendido as escancaras,
em plena cidade do Rio de Janeiro ! Nao ha
a menor providencia, nem de caracter hygie-
nico nem de caracter meramente policial, con-
DO I.BITE,SUA NATU. K EPFElTOS NA ECONOMIA 347
tra a disseminagSo desse toxico destruidor,
tanto mats perigoso quanto mais suavemente
se faz a sua ingestSo, havendo at6 medicos tao
levianos e ignaros, que chegam a prescrevel-o
como alimento a doentes submettidos a dieta !
Dito perante qualquer sociedade medica de
qualquer paiz medianamente civilisado, nao
seria acreditado por ninguem. Houve um pro-
fessor allemao que, discorrendo sobre as pro-
priedades da agua, declarou a seus alumnos
pasmados : aExistem povos barbaros que be-
bem protoxydo de hydrogenio ! » Entretanto
isso nada e, embora a agua, principalmente
no Rio de Janeiro, tenha propriedades extra-
ordinariamente nocivas. Nao sei o que diria
esse homem de sciencia, si soubesse que os
cariocas nao so bebem leite como ate o dao a
seus filhos e aos enfermos.
Esse amor dos cariocas pelo leite e al-
guma cousa como a paixao dos chinezes pelo
opio, salvo OS effeitos soporiferos, immediatos
e deprimentes, do opio, que sao muito menos
nocivos a saude. Aindaassim o commercio do
opio decresceu muito desde que a Inglaterra,
de commum accordo com outras grandes po-
tencias europeas, resolveu perseguil-o, como
perseguiu o nosso trafico de negros escravi-
sados . Quando se dispora alguma das gran-
348 VERDADES INDISCRETAS
des potencias europeas a perseguir o com-
mercio do leite entre nos com a mesma effi-
ciencia com que se combateu o consumo do
opio na China ?
Necessario, entretanto, se faz dizer que
o leite e nocivo em alto grau aqui no Rio.
Em Minas e no Rio Grande do Sul, por exem-
plo, gragas a paradisiaca innocencia do meio,
o veneno nao tern tanta virulencia. Demais,
nao se podem negar ao leite, desde que che-
gue ao Rio, certas propriedades therapeuticas
bastante uteis . Por exemplo : empregado
como antidoto do veneno ophidico, nao deixa
de ter efficacia. O veneno da urutu, para so
citar o mais pegonhento dos nossos ophidios,
raramente resiste a uma injec9ao endovenosa
de leite que tenha quatro horas de permanen-
cia no Rio de Janeiro. Ainda meia hora de-
pois do paciente ter sido picado pela urutu,
pode ser salvo com uma ampola de um cen-
timetro cubico de leite . No caso de pi-
cadas de algum insecto venenoso, como o es-
corpiao, a centopeia, o carangueijo e outros,
basta, para por a victima fora de perigo, uma
simples fricgao local, sobre a mordedura, ten-
do, entretanto, o paciente o cuidado de nao
levar a bocca a parte friccionada, para evitar
<?
DO I^EITK, SUA NATU. E EFFEITOS NA ECONOMIA 349
accidentes dolorosos, como gengivites e ou-
tros semelhantes .
Mas essas propriedades therapeuticas,
sem duvida preciosas, nem por isso dei-
xam de ser extremamente perigosas, quan-
do mal applicadas, motivo por que o governo,
para evitar a degenerescencia da nossa ra9a,
deve, ou prohibir, ou ao menos regulamentar
a vendado leite, como se regulamentou a da
morphina.
O anno humoristico, litterario e social
Resumir em tao breves linhas o que
houve de comico no anno de 1919 e tao diffi-
cil como resumir a tristeza de um cemiterio.
Em 1919 tivemos circos de cavallinhos,
dr. Delphim Moreira, Joaquim Osorio, festas
nacionaes, dr. Austregesilo, F'linto d' Almeida^
Teixeira Mendes, etc., etc.
A dizer a verdade, esses homens e factos
nos fizeram sorrir por um instante, mas naa
nos desopilaram o figado.
O dr. Joao do Rio, capacho em que todas
as manhans alimpa os seus tamancos a colonia
portugueza, teve tres banquetes.
Medeiros e Albuquerque ficou em oppo-
si9ao ao governo, depois de ter sido redactor-
chefe de um matutino — O Imparcial — du-
rante quarenta e oito horas.
A professora Daltro andou com o seu
grupo de obuzeiros de saias ahi pelas ruas er
352 VERDADES INDISCRETAS
no dia da chegada do Presidente Epitacio,
promoveu um conflict© junto ao portao do
Arsenal de Marinha.
O dr. Nilo Pe9anha fez-se cada vez mais
agricultor.
O dr. Antonio Carlos fez-se cada vezme-
nos financista; e o sr. Bressane, cada vez mais
coronel, tornou-se cada vez mais fervoroso
adepto do genio politico do senador Francisco
Salles . , .
Tudo isso sao, ou melhor, foram pilhe-
rias. Nao o sao mais. O que nao sei e de que
lado estara a incapacidade, isto e, si seremos
nos OS incapazes de rir com ellas, ou si ellas e
que serao incapazes de nos fazer rir.
Em verdade, rimos cada vez menos. As
mulheres cariocas riem pouco para nao preju-
dicar a pintura do rosto, ou melhor, para que
nao se Ihes estale o verniz do carao.
Quanto aos homens, ai de n6s! Como
havemos nos de rir, de dar uma b6a garga-
Ihada, daquellas, ja nao digo dos deuses de
Homero, mas ao menos do tempo de dom
Joao VI ?
E' que as preoccupagoes materiaes nos
absorvem. Nao temos tempo nem para rir nem
para ficar extacticos deante de uma bella mu-
iher. Mai vamos descerrando os labios para
O ANNO HUMORISTICO, LITTERARIO E SOCIAL 353
uma risada e ja nos chegam noticias apavo-
rantes : sao os russos que continuam a amea-
^ar o mundo com o incendio maximalista ; sac
OS italianos, que querem tomar Fiume ; sac os
francezes, que nao nos querem restituir os
navios que tomamos aos allemaes; sao os ja-
ponezes, que querem nao somente invadir a
Siberia como ainda vir trabalhar no Brasil, o
que representa para nos um dos maiores peri-
gos contemporaneos ; sao os operarios que se
declaram em parede ; sao os anarchistas es-
trangeiros que nos ameagam a bombas ; e o
cambio que sobe num dia para descer no ou-
tro e tornar a subir no dia seguinte ...
Havera, no meio de todas essas catastro-
phes, tempo para rir ?
Grandes foram os esforgos feitos, durante
a legislatura de 1919, pelodeputado Joaquim
Fagundes {ne Osorio) para nos proporcionar
gargalhadas. O deputado Joaquim e innega-
velmente um grande humorista . Um grande
humorista e um santo. Admiro-o e venero-o.
Joaquim combateu tudo quanto nao fosse pa-
cifista e positivista. Joaquim gritou, berrou,es-
murrou a carteira, urrou, zurrou e azurrou.
Joaquim e Clothilde.Joaquim e August© Com-
te. Joaquim e Borges de Medeiros. Joaquim
e Teixeira Mendes. Joaquim e espantoso. Em
354 VBRDADES INDISCRETAS
summa, Joaquim e feliz, como Marcolino Bar-
reto, como Joao Menezes, como Bressane.
Umaflor de humorismo! Numa bancada de
humoristas, como e indubitavelmente a do
Rio Grande do Sul, Joaquim conseguiu der-
rotar o proprio dr. Carlos Maximiliano, que
6 o grande mestre do humorismo applicado
ao direito constitucional. Pois apezar de to-
dos OS seus esfor9os para nos matar de rir^
Joaquim Praxedes nao conseguiu mais que
nos fazer sorrir uns sorrisos amarellos e ver-
des, como a bandeira nacional . .
E a litteratura, asempre respeitavel lit-
teratura nacional ?
A litteratura no Brasil e uma coisa que
Austregesilo cultiva e Afranio Peixoto illustra.
Austregesilo e o medico-physico espon-
taneo das meninas anemicas que ainda nao
apprenderam a ler por cima . . .
Afranio Peixoto e o Marcel Prevost de
oleo de ricino, asso oxygenado, que alinhava
periodos de cascalho e se esquece das ori-
gens ethnicas do seu sangue, gragas as mara-
vilhas do Henne e do Diplozon applicado aos
cabellos e aos bigodes. Ainda espero vel-o de
cabellos verdes e bigodes azues, que a
Sciencia para tudo tem recursos. O seu ul-
timo romance Truta do Mattos tem, logo as
O ANNO HUMORISTICO, UTTBRARIO B SOCIAL 355
primeiras paginas, a descrip^ao de uma mu-
Iher, que 6 um prodigio de humorismo. Basta
dizer que a rapariga do dr. Afranio tern a bei-
9orra dependurada na ponta do nariz, bem na
ponta, diz elle. E, para nao pensarem que in-
vento, vou transcrever textualmente da Truta
DO Mattos, paginas 6 e 7, o que diz essepsy-
chologo de azeite de dende: aOsbastos cabel-
los atados num coque pezado, a linha direita
da testa, o nariz pequeno e na ponta, bem na
ponta, arregagado com tanta gra9a/a saliencia
dos labios, entreabertos para a palavra que
a lingua molhava a miudo num gesto faceiro,
o queixo, o mento, o pescogo roligo, o collo-
cheio sem demasia, mas com altivez, esvain-
do-se na cintura delgada.» Que synthese lu-
rainosa ! Que clareza aryana ! A regular pelo
estylo, o dr. Afranio e aryano puro, o unico
aryano pur sang que existe no universo. Fi-
gurem a idea que este infusorio da litteratura
faz de uma mulher bonita: ella deve ter a sa-
liencia dos labios na ponta, bem na ponta do
nariz, como as argollas de ferro que os selva-
ge ns costu mam trazer nos delles! E o collo
esvaindo-se na cintura ? Que descrip9ao ! Mas
nao e descripgao: e um inventario. O dr. Afra-
nio, avido de pecunia e ambicioso de posi-
9oes como todos os albinos, deve entrar para
3S6 VERDADES INDISCRETAS
um cartorio. SuaSenhoria, commaisum pou-
co d'agua oxygenada nos bigodes, daria um
bom escrivao. O dr. Afranio tern ma vista —
o que e commum entre assos: acha bonita uma
mulher que tem os bei^os pendurados na
ponta do nariz, mas, apezar de tudo, e um
grande humorista. E' um Swift double de um
George Ohnet, combinado com Tristan Ber-
nard e com influencias de Perez Escrich. O
seu estylo e o de um Cervantes que nao tives-
se escripto o Dom Quixote, e ao mesmo tempo
o de um Joaquim Manoel de Macedo antes do
Mogo LouRO. As suas tendencias psychicas
accusam influencias ancestraes do poeta Luiz
da Gama. quando escreveu a Bodarrada, e
tragos recentes de Hemeterio Jose dos
Santos. . .
Outro facto de grande alcance humoris-
tico em 1919: o dr. Joao do Rio veiu da Eu-
ropa condecorado frealmente somos cada vez
mais desconhecidos dos europeus ! ) e procla-
mado o maior psychologo da Grande Guerra.
O dr. Joao do Rio e o Lavisse brasileiro,
quero dizer, e um Lavisse double de um W.
Stead, com influencias de Jules Huretegrandes
predilecgoes por Stephane Lauzanne. Nota-se
no seu estylo a tortura de um Michel George
Michel em amalgama com Jean Lorrain e ten-
dendo um pouco para a forma superior de
#
O ANNO HUMORISTICO, LITTERARIO K SOCIAL 357
Manuel de Souza Pinto, depois de ler uma
pagina de Gomez Carrillo .
O dr. Joao do Rio, pois, chegado Jda Eu-
ropa, recebeu um banquete da laboriosa colo-
nia portugueza, por ser amigo de Portugal,
e isto mostra que elle sabe viver ...
Logo a seguir, como e amigo pessoal de
D'Annunzio, atravez das informagoes do em-
baixador Souza Dantas, recebeu tambem um
banquete da activa colonia italiana. Vae dahi,
por ter tido um banquete da laboriosa e outro
da activa, recebeu tambem um outro da resi-
gnada colonia brasileira neste vasto Hotel dos
Estrangeiros, que e o Rio, o delicioso Rio de
Janeiro, este suavissimo Rio de Joao. De sor-
te que chegamos a isto: por se dizer amigo
de Portugal, recebeu Joao um banquete dos
portuguezes; por ser amigo de D'Annunzio,
recebeu outro dos italianos; e por ter rece-
bido estes dois, ganhou mais um, offerecido
por brasileiros I Isto e que me deixa um tanto
perplexo: ver um gentilhomem receber um
banquete so pelo simples facto de haver rece-
bido anteriormente dois outros . . .
Creio que nao vale a pena insistir nesses
melancholicos aspectos de humorismo que sao
OS srs. F'linto d' Almeida, Teixeira Mendes,
Reis Carvalho, Francisco Bressane, Joao Me-
358 VBRDADSS INDISCRETAS
nezes e outros notaveis escriptores da antiga
geragao. Deixemol-os em paz. Em 1920, si
Deus me der tinta e saude, pretendo cuidar
de outros assumptos. Ja tenho os dados can-
sados de brincar, durante tantos mezes, com
Austregesilos, Afranios e Hermes Pontes,
esses innumeraveis Hermes Pontes de que
se compoe a poesia nacional. Adeus, pois, 6
genios ! Boas entradas, 6 amigos humoristas
do Parlamento, dasLetras, das Religioes e da
Vida Elegante! Deusvos demuitaveiacomica
para nos divertirdes na imprensa, e muito aci-
do urico para vos divertirdes a vos mesmos e
a vossas esposas na intimidade, nessa intimi-
dade doce em que a mulher escova as unhas,
€ o marido apara os callos, ambos felizes,
contemplando a prole futurosa e aguardando
o libertador ataque de uremia que os ponha
ao abrigo de folliculados impertinentes como
este sujeito que, com todo aprego, se subscre
ve
Vosso admirador e amigo,
Antonio Torres
#
Indiee
INDICE
PAGS.
Prefacio ^^^^
A' maneira de Pangloss 1
A Gentileza Britannica 5
Litteratura Hermista 9
Moeda falsa e paradoxo 15^
Zodiac© ^9
A castidade do nii 25
O Bacillus Lyricus 31
O paradoxo legal 37
Homens e abelhas '*3
A f esta da Melancolia ^^
Carne para canhao ^^
Edouard Drumond *3
A Academia em sessao 5/
A morte da peccadora 61
O paradoxo da lei 6*
O quinto mandamento ^7
O 14 de Julho • • 6^
Quelque chose de vierge 73
Amizade criminosa ' ^
As crianpas 77
A tortttra do perfume '9
Uscandalo ! • • ^^
Destempero de Linguagem • 85
O nil symbolico ^'
Amor e Poesia ^1
O mal existe ? ^^
Bodas e Pezames ^
EJlogios J03
Paz aos id61atras ^"^
A tyrannia democratica ^^7
Commentarios ao «Binoculo» ^*^
Os bigodes do Exercito ^^^
362
PAGS
Exigencias do minuete 119
Ruido e Solidao 123
O P090 maldito 125
As mulheres na politica 129
Verhaeren 133
Heresia orthographica 137
A princeza Arminda 141
ly'homme qui assasina 143
Os crimes de Amor 147
O jogo franco 151
Preconceitos de linguagem 155
O Feiticeiro 159
Bailarinas 161
O jogo 6 vicio ? 165
A elegancia masculina 169
A elegante e o mendigo 171.
L/e Roi s'amuse 173 .
Casamentos por annuncios 175
Amores hediondos 179
Como fazer a paz 181
A Irlanda 185
A Mttlher e a Mentira .) 189
Odio de rafa '. i-^ 191
Stiicidios 195
O feminismo periga 197
Pacifismo 201
A policia e o espiritismo 203
Lopes Trovao 207
No caf6 209
Dois bons amigos 211
Casadas e solteiras 213
A desvantagem do nome 215
Agitando um pello 222
Numa Exposi9ao de Caes 229
Considera9oes actuaes 237
O cabe9a de turco 245
Uma semana alegre 255
O vendedor de passaros 265
Brul^ e o seu publico 273
Brasileiros e Estrangeiras 281
Vinte e uni de abril 293
363
PAGS.
Incidente litterario 299
O decobrimento do Brazil 303
Gttilherme II e a ssychologia do heroism© . . 309
A Crapula 317
Urn caso de policia 325
O Coronel Roosevelt 331
Que 6 uma off ensiva ? 337
Christ© ©u Christa ? 341
D© leite, sua natureza e eff eitos na economia 345
O ann© humoristico, litterari© e s©cial 351
-^
*rB-7200-4
C
EDiqOES DA UVRARIA eASTllHO
Traducgoes de FERNAO NEVES
Paulo Bourg-et. — Lazarina. 1 vol 3$000
Paulo Bourg-et. — O Sentimento da Morte.
1 vol 3$000
Th. Dostoievsk3% — RECORDA90ES da Casa dos
MoRTOS. I'vol 3$000
M. Dellj . — Escrava . . . ou Rainha? 1 vol. . . 3$000
M, Delly.— Entre Duas Almas. 1 vol 3$000
H. Ardel.— A Dor de Amar. 1 vol 3$000
H. Bordeaux. — O Descerrar dos Olhos.
1 vol 3$000
Dr. Fernando Nery. — L196ES de Direito Cri-
minal, exg-otado
R. Tag-ore. A Lua Crescents. Tradue9ao do
Dr. Placido Barbosa, 3^ edi^ao. 1 vol 3$000
Dr. Fernando Magalhaes. — L196ES de Clinica
Obstetrica. I vol. enc 15$000
Max Fleiuss e Basilio de Magalhaes — Quadros
de HisTORiA Patria. 2* edi^ao, 1 vol cart. 2$000
Basilio de Magalhaes . — A Lyrica de SteC-
CHETTI. 1 vol 3$000
Jose Maria Bello. — Ruy Barbosa. 1 vol... . i..,.,,^ S$00p
CatuUo daPaixao Cearense. — Mku SertXo, 2*
edi5ao aug-mentada. 1 vol 3$000
Catullo da Paixao Cearense. — SertXo Em Fi,or.
1 vol 3$000
Xavier Marques . — A Boa Madrasta . 1 vol . . 3$000
Dr. Annibal Pereira. — Um Novo Tratamento
DA Blenorrhagia DO HoMEM. 1 vol. enc. 7$000
A. Carneiro Leao — Problemas de Educaqao.
1 vol 4|000
A. Carneiro Leao. — O Brasil E A Educa^Xo
Popui^ar. 1 vol 4$000
Da Costa e Silva. Pandora. 1 vol 4$000
P. Leonardo Mascello. — A EsTHETiCA do Sl-
i,ENCio . 1 vol 4.$000
Antonio Torres. — VerdadES IndiscrETAS
1 vol 4$000
Soiiza Bandeira — (J. C.) EvoCAQOES E Outros
EscRiPTos. (Com introducgao de Mario de
Alencar) no prelo
Alcides Flavio. — Velaturas (contos). No
prelo
Gastao Cruls . — Coivara (contos) . No prelo . .
D. Francisco Manuel de Mello. — Apoi^ogos
DiAi,OGAis (edigao critica). Reproduc^ao
fiel da 1' edi9ao de 1721 . No prelo. ......
Typ- Baptista da Souza — Rua da Misericordia, 5' — -^io
(3 ^
AN.ONIO TORRES
VERDflDES
2^. ediQao
(5.° Milheiro)
%
RIO DE JANEIRO
l.B¥aARlA CASTII.HO
A. .T. PE CASTILHO - Editor
RUA S. Josfe, 114